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Destaques

Barganha

O silêncio da última vez em que se falaram era tudo o que restava. O som de passos se afastando, sem saber que seria a última vez, acompanhado de uma leve fantasia de que algum dia iriam se reencontrar, ainda que em um contexto diferente. Ao lidar com a luta contra o vício, também vinha revivendo memórias e, agora, duas semanas sem fumar cigarro, estava pensando em como a mente estava tentando barganhar. Quem sabe trocar por um cigarro mais barato? Quem sabe finalmente vou conseguir fumar menos? Muitas possibilidades que sabia que não deveria ceder. A ausência que alguém causava na vida não era tão diferente. Muitas vezes, ficávamos presos em um ciclo de “E Se”, alimentado por nostalgia, desejo e fantasia, mas nem sempre com os pés no chão. Mas assim como o vício que sabia barganhar, a mente também dava seus próprios meios de iludir de alguma forma. A aceitação radical de que algo não vai mais acontecer, muitas vezes, é tudo o que é necessário para conseguir seguir em frente. Estav...

Resenha: A História de Lisey – Stephen King

Capa do livro A História de Lisey, Stephen KingTerminei de ler ontem Love: A história de Lisey, do escritor Stephen King – amado e odiado pelos leitores e pela crítica, como acontece com a maioria dos autores best-sellers. Ele, o Mestre do Terror, se propôs a contar uma história de amor, sem deixar de lado, é claro, a sua imaginação fértil e mórbida, com uma boa dose de terror e fantasia. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Objetiva, em sua versão pocket, de 677 páginas, em 2011, no selo Ponto de Leitura, com tradução de Fabiano Morais.

Não é sempre que a sorte sorri. Encontrei o livro numa mega promoção por apenas R$ 9,90 na Livraria Leitura e não pensei duas vezes antes de comprá-lo. Depois de ler esse romance do Stephen King, fiquei com vontade de comprar mais livros do autor. Já tinha lido alguns na minha adolescência, como A Coisa, A Hora do Lobisomem e Carrie, A Estranha. Nos últimos anos, li Misery.

“Todo casamento tem dois corações, um claro e um escuro...”

A citação na contracapa já é um ótimo gancho para o leitor ficar intrigado pelo que o aguarda em A História de Lisey. Aliás, para quem gosta de sublinhar essas frases de impacto, o livro tem dezenas delas, sem falar expressões usadas pelos personagens que o deixam intrigado para saber sua origem ou arrancam risadas, como “Bool ruim”, “ESPANE”, “Isso sim caiu do cu do cachorro!” e a minha favorita: “o lago da linguagem, o lago dos mitos”.

Lisey é a mulher de Scott, um escritor que morreu dois anos atrás. Após a morte do homem, ela começa a receber ligações de professores e editores interessados nos manuscritos de romances dele que ainda não tinham sido publicados. No entanto, Lisey ainda não está preparada para abrir mão das coisas do marido, não sem antes entender os seus mistérios compartilhados, que na época ela fez questão de bloquear.

A história é narrada em terceira pessoa e se passa no presente, embora constantemente Lisey tenha flashbacks com o escritor. As subdivisões dentro de cada capítulo permitem essa transição entre presente e passado, sem se tornar cansativo ao leitor ou ficar confuso. A imersão é tão intensa que a história de fundo se torna tão interessante quanto à primária. Para quem é escritor, por exemplo, é uma delícia acompanhar um pouco do processo criativo de Scott e do relacionamento entre ele e Lisey, sob aquela perspectiva de que se envolver com um artista (que, aliás, enxerga a escrita como um ofício) não é nada fácil, mas pode ser recompensador. No primeiro parágrafo do livro, o leitor já se familiariza com esse contraste: Lisey é invisível x Scott tinha vencido prêmios literários, concedido entrevistas, era adorado pelos seus leitores e tinha até mesmo fãs malucos. Ela é uma sombra perto dele, mas ao longo do livro descobrimos que ela também é sua salvadora.

“Simplesmente a abraçou. Porque às vezes um abraço era a melhor opção. Essa era uma das coisas que ela havia ensinado ao homem cujo último nome tinha assumido – que às vezes era melhor ficar calado: às vezes era melhor simplesmente calar a boca incessante e segurar firme”.

É difícil resenhar livros de terror sem acabar com aquela deliciosa sensação de suspense, que prende o leitor página após página, capítulo após capítulo, deixando-o o intrigado para chegar até o final e resistindo a tentação de trapacear e pular até as últimas partes. Apesar de relativamente longa, a história não se torna maçante, pelo contrário, envolve o leitor em uma rede de conflitos, fazendo-o descobrir sobre o passado de Lisey e Scott e qual a relação com o que estava acontecendo no presente.

“Então, começa a ver suas borboletas. É o que quase sempre acontece quando ela começa a cair no sono. Vê borboletas vermelhas e pretas enormes abrindo suas asas no escuro. Já lhe ocorreu que ela as verá quando a hora da sua morte chegar. O pensamento a assusta, mas só um pouco”.

Stephen King usa diversas referências em seu livro, inclusive em alguns momentos é possível se perguntar se Scott não seria o seu pseudônimo, afinal, ambos são escritores de terror. De forma indireta, Scott compartilha algumas informações sobre a arte da ficção, como o seu lago de ideias, um lugar onde é possível tirar inspiração para suas histórias e você não deseja estar lá durante a noite. A ideia deste lago é fascinante, em uma mistura de memórias do subconsciente, fantasia, imaginação e terror, onde estão a cura e a morte, a segurança e o perigo.

Outro ponto que me fez perguntar quanto de Stephen King tinha em Scott foi o uso de uma linguagem sem hipocrisias, consideradas baixas por muitos críticos, que fazem parte do estilo de ambos os escritores. Nesta intratextualidade toda, um escritor contando sobre suas obras, há um momento em que o véu roxo se levanta, e o leitor entra no jogo e questiona o quanto tem de biográfico nesta loucura toda ou se não se passa da imaginação de King.

“É o lago em que todos nós vamos beber, nadar, e em cujas margens vamos pegar um peixinho; é também o lago que algumas almas destemidas singram em seus frágeis barcos de madeira atrás dos peixes grandes. É o lago da vida, a taça da imaginação...”.

Os capítulos iniciais apresentam ao leitor um pouco do luto de Lisey, de como ela ainda não superou a morte do marido e mesmo sendo ignorada nas matérias escritas sobre ele ou como o tratamento dado a ela muda quando as pessoas sabem que ela foi casada com Scott. A medida que a trama desenrola, descobre-se que ela o ama, o amou e sempre o amará, pois Lisey é a única que sabe o terrível segredo sobre os demônios de Scott e sua loucura, que mesmo tendo o marcado e inspirado suas histórias, também podem ser a única forma de salvá-la do vazio, dos problemas de família e de um leitor obcecado pelos livros de Scott.

Love – A história de Lisey, de Stephen King, traz revelações e resoluções de conflitos surpreendentes.  Em meio a toda a loucura proposta pela história, na qual mesmo sendo ficção o leitor se vê mergulhado naquele lago, o escritor traz uma linda parábola sobre o amor e a imaginação, sem o romantismo barato – um livro de terror fictício com muitas lições sobre a realidade dos relacionamentos e sobre a vida.

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