Às vezes, ao tentar parar um vício, é preciso encarar os pensamentos que temos sobre ele e tentar mudá-los. Aceitar que o que fazia sentido uma vez, pode perder o poder que tem em sua vida. De repente, o que antes parecia dar uma sensação boa, agora o fazia se questionar o que estava tirando daquela situação. Era ao começar a questionar, que tentava se aproximar cada vez mais da lógica, tentando se afastar temporariamente das emoções, que o faziam desejar algo que fazia mal para sua saúde. Sabia que não era só por conta das emoções, eram os hábitos que foram repetidos durante anos, era o organismo tentando se adaptar sem a substância e o cérebro desejando mais: era uma batalha diária, que um dia esperava que se tornasse só uma lembrança. Precisava passar por tudo aquilo. Queria que tivesse um caminho mais fácil e instantâneo? Sem dúvidas. A ideia de que não importa o quanto tempo a pessoa esteja sem fumar, há o risco de ter uma recaída, era algo que não o reconfortava, mas que lembrava...
Menina Má (The Bad Seed)é um desses livros que causou muito impacto na época em que foi escrito e, atualmente, diante de tanta violência na mídia e nas narrativas de diferentes formatos já não provoca tanto espanto, mas não deixa de ser inquietador. A obra literária do escritor William March, de 1954, foi publicada no Brasil pela DarkSide Books, em 2016, com tradução de Simone Campos.
A edição da DarkSide traz uma introdução da crítica literária e escritora norte-americana Elaine Showalter, na qual ela faz um breve levantamento sobre a biografia de William March, fazendo uma ponte com sua criação literária e o contexto em que o livro foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos, ressaltando a forte influência da psicanálise – a qual fica evidente ao longo da trama, na maneira que o autor construiu o romance de suspense.
O romance Menina Má, de 272 páginas, está dividido em 12 capítulos. William March tem um estilo de escrita bem preciso, sem floreios. Algumas das digressões e devaneios fazem parte da tentativa do autor de mostrar a influência da psicanálise na época, mas ao mesmo tempo é como se o autor estivesse zombando da sociedade e do leitor com sua ironia, tentando provar que a maldade nem sempre pode ser vista, especialmente, quando não queremos ver ou aceitar. Por vezes, é possível imaginá-lo mostrando a língua, como Rhoda.
“Sempre houve algo estranho com Rhoda, mas eles ignoraram suas esquisitices, esperando que, com o tempo, ela fosse se tornando mais parecida com as outras crianças. Mas isso não aconteceu”.
O livro gira ao redor de Christine Penmark e sua filha Rhoda. Logo no primeiro parágrafo sabemos que algo vai acontecer e que Christine está desesperada. Então, o narrador começa a relembrar e narrar tudo o que aconteceu com a mãe da garota, até chegar aquele ponto atormentador em que as coisas já não têm volta.
A narrativa de Menina Má é bem linear, mas costuma saltar pelo passado quando Christine tenta relembrar algo de sua vida ou de sua filha. Depois de ler a introdução de Elaine Showalter, alguns pontos ficam bem evidentes, como a compulsão da pequena Rhoda pelo reconhecimento e a medalha de caligrafia, obsessão que acaba dando origem ao conflito que movimenta a trama e nos leva a mergulhar cada vez mais na personalidade da garotinha. O próprio William March precisou deixar seus objetivos de lado por causa das mudanças de família e da guerra, até finalmente poder se dedicar à escrita.
“Afinal, qual era o problema de Rhoda? Por que ela não agia como as outras meninas da sua idade? Qual era a explicação para aquele estranho comportamento antissocial? Ela pensou no passado, retrocedendo ao começo da vida da menina, esforçando-se para enxergar se falhara em educá-la ou amá-la, tentando encontrar os erros que cometera...”
Embora Christine e outros personagens percebam que há algo diferente em Rhoda, a garotinha foi educada de maneira a tentar parecer meiga e consegue disfarçar e mentir com tanta naturalidade que sua carinha de anjo até engana algumas pessoas... Mas bastam alguns instantes por perto da menina, para que ela comece a revelar como realmente é e que por trás de sua maturidade e distanciamento sobre as coisas se esconde um segredo de família.
Seria Rhoda uma semente do mal? Poucos livros exploram personagens infantis como vilões, especialmente se são garotinhas – a maioria dos livros de thriller aposta em psicopatas homens. Com a morte de um garoto do colégio que ganhara a medalha que a filha tanto queria, Christine começa a perceber que a tragédia parece estar sempre por perto de sua filha nos últimos tempos, o que a faz prestar mais atenção e investigar sobre o assunto.
“Parecia-lhe que sua filha, como se pressentisse que algum fator de corpo ou de alma a separava dos seus semelhantes, tentava acobertar essa diferença simulando os valores que os outros de fato prezavam. Porém, como não havia nada de espontâneo em seu coração para orientá-la, ela precisava usar como substitutos o raciocínio, a ponderação, a experimentação, para apenas assim ir tateando e descobrindo, às cegas, o caminho para melhor arremedar as mentes e as intenções de seus modelos”
Quanto mais Christine investiga sobre o comportamento de Rhoda, mais somos levados às perguntas inquietantes e situações que tiram a mulher de si. A maneira que William March amarra as pontas do livro nos leva por reviravoltas surpreendentes e um final pra lá de irônico.
Menina Má (The Bad Seed) foi adaptado para um espetáculo da Broadway em 1954 e ao cinema em 1956, cuja tradução brasileira do filme é Tara Maldita, dirigido por Mervyn LeRoy. A obra de William March impressiona pela frieza da personagem, pelos conflitos ao longo da narrativa e pela tragédia. As questões psicológicas lançadas ao longo do romance levam o leitor a uma deliciosa viagem sobre a perversidade humana, mesmo após chegarmos até a última página e fecharmos o livro. Embora March não possa ter desfrutado do sucesso do seu livro, o que parece a sina do escritor, onde quer que ele estivesse, é difícil não pensar nele se divertindo com o espanto dos leitores e abrindo o seu sorrisinho de menino mau.
Sobre o autor – William March nasceu William Edward Campbell, em 1893, na cidade de Mobile, Alabama – foi o segundo filho e o primeiro menino de uma família com onze crianças. Saiu de casa aos 16 anos, após sua família se mudar para uma cidadezinha madeireira e ele ser forçado a deixar a escola para trabalhar como arquivistas. Nos anos seguintes, March ingressou na Faculdade de Direito da Universidade do Alabama, antes de se mudar para Nova York em 1916 e se alistar na Marinha, durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1918, ferido na frente de batalha na França, deixou o serviço militar com as condecorações Distinguished Service Cross, Navy Cross e Croix de Guerre.
Após o fim da guerra, começou a trabalhar para a transportadora Waterman, emprego em que permaneceu por dezoito anos. Em 1933, publicou seu primeiro romance, Company K, inspirado em sua experiência de guerra. Depois de um colapso nervoso que sofreu enquanto trabalhava na Alemanha, March retornou a Nova York e escreveu cinco livros ao longo de onze anos: Come in at the Door (1934), The Tallons (1936), Some Like Them Short (1939), The Looking-Glass (1943) e Trial Balance (1945). Em 1946, ganhou confiança suficiente para largar o trabalho e se concentrar na escrita em tempo integral.
Pouco depois, March sofreu um colapso ainda mais severo, passando seis meses em um sanatório no Sul dos EUA. Em 1950, havia se mudado para New Orleans e estabelecido uma vida mais estável e tranqüila. Quando Menina Má, universalmente reconhecido como seu trabalho mais refinado, foi publicado em abril de 1954, March já estava bastante doente. Morreu de um ataque cardíaco pouco tempo depois, no dia 15 de maio de 1954, não podendo desfrutar do significativo sucesso do seu livro.
Este livro foi enviado pela DarkSide Books, editora parceira do Blog do Ben Oliveira, para que eu pudesse ler e resenhar para vocês.
E você, já leu Menina Má? Tem curiosidade? Comente!