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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: As Cabeças do Doutor Satamini – Juca Badaró

As Cabeças do Doutor Satamini, livro do escritor, jornalista e produtor cultura Juca Badaró, publicado pela Cultura em Letras Edições, em 2015.  O livro, de 118 páginas, reúne 11 contos que retratam personagens que provocam estranhamento, por lidarem com seus conflitos interiores diante da realidade de seus cotidianos, confrontados pelos seus medos, memórias e subconscientes.



Tina e a Serpente é o título do primeiro conto do livro e apresenta uma narrativa intensa e envolvente, um ótimo convite ao leitor para viajar pelas histórias de Juca. A protagonista é uma artista que lida com uma série de dualidades: o fracasso e o sucesso, a criação e a destruição. Como toda alma criativa, para que ela possa se dedicar à sua arte, ela conta com a ajuda de um especialista para ajudá-la a vender, mas coisas fogem do seu controle.

Desde o primeiro parágrafo, a narrativa dá um vislumbre do clima sombrio que vem a se instalar no leitor. Personagens com personalidades intensas são envolventes e suas ações costumam levá-los para desfechos inesperados. Os conflitos internos e externos também podem se relacionar às diferentes facetas que o artista precisa ter para sobreviver diante de um mercado que o leva à miséria ou à glória. Esta mistura entre real e ficção, de metáforas sobre o processo de criação artística com a própria escrita e demais pontes tornam Tina e a Serpente uma delícia de ler.

“A sensação de segurar um pincel e conseguir transferir para a tela em branco todas as suas angústias, anseios e verdades, é uma dádiva de Deus. E eu sempre acreditei nisso, sempre soube que desde criança este dom supremo me foi dado e eu precisava, queria desenvolvê-lo”Trecho do conto Tina e a Serpente.

O conto A Mulher de Dentro apresenta uma personagem trans: Sebastião ou Tiana que procura a ajuda do psiquiatra Roberto, para entender melhor os seus desejos responsáveis pela sua angústia. O presente e o passado da personagem são intercalados, como uma sessão de terapia, com um clímax de epifania – uma fonte de prazer para quem gosta de narrativas psicológicas.

“E para onde, diabos, foi Tiana com tanta inocência? Tiana foi embora para virar mulher, mas aprendeu que algumas vezes seria preciso virar homem também”. Trecho do conto A Mulher de Dentro 

O conto O Divino e Maravilhoso narra a amizade entre Marcondes e Bernardo, numa narrativa que intercala a primeira pessoa com a terceira pessoa e se faz de uma colcha de memórias, afinidades e erudição. Em uma nuvem de nostalgia, o protagonista relembra a presença que o marcou, diante dos dias de solidão e incompreensão.

“Pisou o asfalto, o mangue, como sempre desejou e como vinha planejando nos últimos 35 anos de sua vida. Deslizou, descalço, sobre uma espessa camada de amor e, sobretudo, de ódio, e talvez por isso alcançou dimensões as quais nunca imaginaria alcançar. Foi apenas livre e feliz. E não lhe faltava nada. Nem medo da vida, nem amor ao próximo e, especialmente, não lhe faltavam palavras quando comumente e quase necessariamente precisava escondê-las”Trecho do conto O Divino e Maravilhoso

Em A Distância de um Sussurro, o leitor se depara com uma narrativa em terceira pessoa, na qual o personagem Orlando compartilha suas sensações e devaneios dentro de um museu de arte moderna. Mais uma vez, o autor consegue dialogar a literatura com as artes, discutindo os limites entre a criação, a intencionalidade do artista e os efeitos no público. Como uma visita guiada ao museu, o narrador vai nos levando para um labirinto de reflexões.

“O ato de criação não é de forma completa praticada pelo artista, já que o próprio espectador traz o trabalho para o contato com o mundo exterior, decifrando, interpretando seu interior e somando suas vivências e contribuições para o ato artístico”Trecho do conto A Distância de um Sussurro

O Homem Só traz um narrador inquieto, um escritor que está com os pensamentos em um personagem preso ao seu passado. Da visita deste personagem ao seu amigo do colegial, o escritor vai revelando entre o presente e flashes do passado sobre a tragédia. Deste fio condutor, o narrador-protagonista discute o seu próprio processo de criação literária e comenta algumas das angústias de ser escritor e a necessidade de se viver / tornar presente.

“Aquele personagem preso ao passado, cheio de lembranças da juventude, andava pelos longos caminhos silenciosos do maior cemitério da cidade. Buscava conforto através da memória e das estórias vividas com o falecido companheiro. Por semanas ele ficou na minha cabeça, insistindo para nascer. Aonde quer que eu fosse estava comigo e quase sempre incomodava. Sua presença normalmente me fazia perder a concentração e já não conseguia conversar com as pessoas...”Trecho do conto O Homem Só.

No conto O Medo do Porão Escuro ou Os Meses que Precedem e Sucedem, o personagem principal narra em primeira pessoa a saudade que sente de uma mulher de sua infância, uma viagem e a tentativa de encontrar a paz do presente nas lembranças do passado.

“Era tão difícil o homem de hoje visitar o menino de antigamente. Os dois pareciam tão diferentes e interessados em vidas alheias e distintas. Apenas ela proporcionava o encontro dos dois que era um só. O homem e o menino. O homem perdido, fora de si, e o menino ansioso pela vida, apressado e inocente”. Trecho do conto O Medo do Porão Escuro ou Os Meses que Precedem e Sucedem

O Homem Vestido de Tempo como o próprio título indica tem relação com as transformações temporais. Novamente, há uma tentativa de se resgatar a inocência dos velhos tempos, aquela sensação nostálgica de que a vida costumava ser mais simples e cheia de vida em relação às dificuldades e medos da vida adulta.

“Às vezes era preciso fechar os olhos por alguns segundos, mesmo caminhado e correndo o risco de esbarrar em alguém, para que pudesse lembrar que naquele momento não estava só”.Trecho do conto O Homem Vestido de Tempo

O conto Às Vezes Me Aventuro Em Obras de Ficção traz, mais uma vez, um personagem escritor. O protagonista se chama Borges e de uma ida ao consultório, ao retornar para casa percebe que foi assaltado e levaram o original do seu livro de contos. A surpresa é maior ainda ao notar que o material foi publicado, levando o personagem a sair de sua zona de conforto.

“Borges estava desconsolado e saiu da delegacia muito pior do que entrou. Desesperançado. Ele sabia que era praticamente impossível reescrever os contos. Foram meses de um trabalho árduo, de noites inteiras em claro, de visitas perigosas aos lugares mais profundos de suas memórias de infância”.Trecho do conto Às Vezes Me Aventuro Em Obras de Ficção

O primeiro Bispo é uma narrativa que mistura o real com o fantástico. De uma viagem a um hotel até o surgimento de um bispo, o leitor se sente transportado pelo tempo em uma espécie de justiça poética.

“A figura humana vestia roupas pretas e vermelhas, de um tecido pesado, com bordados incompreensíveis àquela distância. Parecia ter se afogado e foi salvo graças a uma das rochas que serviram de apoio para se levantar e descansar enquanto recuperava o fôlego”. Trecho do conto O Primeiro Bispo

Linha Dois também brinca com as expectativas do leitor, ao relatar o encontro entre um homem e uma amiga que não se viam há meses, com a revelação de uma dor que ela estava ocultando do outro e precisava colocar para fora. Das estranhas coincidências da vida, o protagonista acaba fazendo parte da trama sem ter ideia.

“A demora do metrô era um convite ao meu pequeno prazer. Os minutos entre uma composição e outra na plataforma, eram mais que suficientes para alimentar minha imaginação, interrompida apenas no momento em que as portas se abriam e todos aqueles homens e mulheres se misturavam numa das mais curiosas aglomerações”Trecho do conto Linha Dois

O último conto do livro, As Cabeças do Doutor Satamini, conta a história de Elísio, um homem que trabalha gerenciando monumentos da prefeitura e se depara com a escultura de sete cabeças em bronze e mármore. Da descoberta, o protagonista se vê obcecado com a arte, a ponto de sonhar com elas e quase enlouquecer.

“As vozes masculinas e femininas se misturavam numa fala confusa e desconexa e algumas arregalavam os olhos e mexiam as orelhas para chamar atenção. Elísio quis pedir silêncio, mas não conseguia se mexer. Como não eram entendidas por Elísio, as cabeças foram ficando cada vez mais nervosas e inquietas. Depois passaram a gritar numa atitude ameaçadora. Elísio estava imóvel diante delas e pela primeira vez sentiu medo. Acordou com o coração disparado e o corpo molhado de um suor exagerado e quente. Abriu os olhos e encarou as fotografias na parede. Não conseguiu mais dormir”.Trecho do conto As Cabeças do Doutor Satamini.

Juca Badaró imprime em suas narrativas suas experiências com produções culturais. Ainda que cada narrativa seja singular, todas elas mantêm a essência do autor, um observador apaixonado pelas artes e contador de histórias. O escritor vai além do entretenimento e possibilita ao leitor um mergulho dentro de si mesmo e ao observar para fora das páginas, entre alfinetadas às questões da sociedade capitalista em que vivemos, no qual a arte está sempre deslocada do que ela realmente é, seja tomada como um simples hobby-supérfluo ou uma mercadoria.
Juca Badaró no lançamento do livro realizado no Rio de Janeiro. Foto: Vivian Rigueira / Edição do blogueiro.

Sobre o autor – Juca Badaró nasceu em Salvador, Bahia, no dia 14 de março de 1981, onde se formou em Comunicação Social – Jornalismo. Em televisão, desde 2005, atuou como roteirista e editor de programas jornalísticos e de entretenimento. Em cinema, dirigiu três filmes de curta-metragem. Um deles, “O Filho da Atriz”, foi exibido em diversos festivais nacionais e premiado como melhor filme de ficção do júri popular no I Festival de Cinema O Cubo (RJ) – 2014. “As Cabeças do Doutor Satamini” é o seu primeiro trabalho literário.

Ficou interessado? O livro As Cabeças do Doutor Satamini pode ser encontrado no site da Cultura em Letras Edições e na Livraria Cultura!  

A obra também está cadastrada no Skoob – A Maior rede social para leitores do Brasil: http://www.skoob.com.br/livro/512421ED518866 

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