Minha leitura deste início de dezembro foi
A Menina Submersa: Memórias, da escritora norte-americana
Caitlín R. Kiernan, publicado no Brasil pela
DarkSide Books, em 2014, de 320 páginas, com tradução de Ana Resende e Carolina Caires Coelhos. A obra foi publicada originalmente nos Estados Unidos, em 2012, com o título
The Drowning Girl: A Memoir. O
livro de horror e fantasia sombria também traz elementos da
escrita autobiográfica e brinca com os diferentes gêneros literários e um dos reflexos da literatura na pós-modernidade.
O romance é narrado em primeira pessoa por
India Morgan Phelps, apelidada de Imp, uma mulher que está obstinada a contar uma história de fantasmas. Entre as características mais marcantes da narrativa está a escrita marcada por digressões, rupturas temporais e pela narradora que perde e se acha, do início ao final do livro.
Imp é pintora e se arrisca a escrever contos (embora não se veja como uma escritora) e sua arte acaba sendo influenciada pela sua mente esquizofrênica da protagonista – o que também dá um toque delicioso ao livro, fazendo o leitor viajar pelas memórias, sonhos, alucinações e frutos da imaginação da personagem-narradora e mostra um pouco do seu processo de criação literária.
"Nenhuma história tem começo e nenhuma história tem fim. Começos e fins podem ser entendidos como algo que serve a um propósito, a uma intenção momentânea e provisória, mas são, em sua natureza fundamental, arbitrários e existem apenas como uma ideia conveniente na mente humana. As vidas são confusas e, quando começamos a relacioná-las, ou relacionar parte delas, não podemos mais discernir os momentos precisos e objetivos de quando certo evento começou. Todos os começos são arbitrários"
A narração de Imp é envolvente, mas pode desagradar ao leitor acostumado com narrativas mais lineares – o que não foi o meu caso, tornando uma leitura prazerosa. Quando uma história é narrada em primeira pessoa, o leitor tende a acreditar em tudo (ou quase tudo) o que tem a contar e isto nos torna mais suscetível a viajar pelas histórias dentro de outras histórias, mesmo quando a própria India não sabe mais distinguir o que realmente aconteceu ou o que ela imaginou. Este tipo de narrador não-confiável acaba mentindo e dando pistas, desenvolvendo um efeito de metaficção e mergulhando o leitor não só em como funciona o processo de associação de um personagem paranoico e esquizofrênico, mas também nos rabiscos, escolha de palavras e como os escritores usam experiências pessoais, acontecimentos marcantes e suas trocas com outros produtos culturais para desenvolver seus próprios romances, novelas e contos.
O título A Menina Submersa está relacionado a um quadro homônimo, pintado pelo artista
Phillip George Saltonstall, em 1898, o qual provoca uma série de reações em Imp, a levando a imaginar não só histórias de fantasmas, mas como ela própria diz de lobisomens e sereias. A mulher que também é pintora se sente tão assombrada pela imagem de uma menina com os pés sendo lambidos pelas águas de um lago na mata. Caitlín desenvolve a narrativa de uma maneira que o próprio leitor passa a se questionar se as histórias dos quadros realmente são verdadeiras.
“Fantasmas são essas lembranças fortes demais para serem esquecidas, ecoando ao longo dos anos e se recusando a serem apagadas pelo tempo”
A Menina Submersa é um livro rico em intertextualidade, alguns diálogos entre diferentes obras da literatura, autores e outras formas de expressões artísticas são explícitas, enquanto outras podem ser notadas nas entrelinhas. A tragédia é uma de suas marcas, assim como os transtornos mentais. Imp tem um histórico de esquizofrenia em sua família. Sua própria mãe, Rosemary deixou um bilhete suicida citando Virginia Woolf (a escritora britânica que escreveu uma carta para o marido, antes de colocar pedras nos bolsos e se afogar em um rio), enquanto a avó, Caroline abriu o gás e fechou todas as janelas antes de dormir.
"O que eu quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você foi paciente e incrivelmente boa comigo. Quero dizer que... todos sabem disso. Se alguém pudesse me salvar, teria sido você. todas as coisas me deixaram, menos a certeza de sua bondade" (Virginia Woolf, 1941)
Ao tentar entender sua própria história, Imp acaba ficcionalizando sua biografia e investigando mais sobre outros casos de suicídio coletivo. A vida da protagonista muda quando seu caminho se cruza com o de
Abalyn, uma mulher transgênera que se torna sua colega de quarto e amante. Com a admiração de India por Abalyn e este contato, ela começa a notar alguns conflitos internos que surgem e podem ser enfrentados. As duas têm histórias de vidas interessantes e a narrativa fica mais intrigante ainda quando Imp investiga sobre
Eva Canning, uma misteriosa mulher que acaba se tornando ponto central das narrativas escritas, uma verdadeira obsessão e musa – ou no caso, uma
sereia, cuja simbologia é explorada bem ao longo do livro, fazendo uma ponte com outras obras literárias.
"Seu coração é frágil [...] Seu coração é uma loja de louça e o mundo é o touro dentro dela. Seu coração é feito de vidro"
Os fantasmas, em A Menina Submersa, podem ser tomados no sentido literal e também como as marcas deixadas na mente, coração e alma da protagonista, bem como dos outros personagens, cujas narrativas são entrelaçadas com as de Imp e, por vezes, a inspiram a produzir sua arte, como uma espécie de colagem ou pastiche – os fragmentos de referências internas e externas são. Destrinchar o livro se torna uma tarefa árdua (desde referências clássicas até contemporâneas) e a intertextualidade só vem a tornar a obra mais apetitosa.
A Menina Submersa proporciona entretenimento, reflexão e uma maravilhosa, literalmente, bisbilhotada na arte da ficção. Caitlín R. Kiernan bebeu de muitas fontes da literatura e não tem receio de revelar – na nota da autora, ao final do livro, ela divulga os títulos e autores que a inspiraram a escrever The Drowning Girl:
“Devo reconhecer muitas fontes de inspiração – porque é o que fazemos, escritoras e malucas, nós desmontamos as coisas e voltamos a montá-las de modos diferentes”. A escritora cita nomes da literatura de fantasia, como Lewis Carroll (Alice no País das Maravilhas), Charles Perrault, os irmãos Grimm, Hans Christian Anderson, bem como da literatura de horror, como Edgar Allan Poe e Peter Straub, entre tantos outros.
Quem me conhece sabe que não sou o tipo de leitor que se prende a detalhes gráficos dos livros, mas não tem como deixar de lado neste caso. A edição limitada de A Menina Submersa, publicada pela editora DarkSide Books, tem um projeto gráfico lindo, tornando mais sinestésica a imersão no universo de ficção criado por Caitlín R. Kiernan. Desta combinação entre arte e escrita, ainda que outras edições do livro não tenham o mesmo design e ilustrações, a autora consegue nos fazer imaginar e nos deixar submersos em seu lago de linguagem. Não é à toa que o livro foi indicado a mais de cinco prêmios de literatura fantástica, e vencedor do importante Bram Stoker Awards 2013.
Sobre a autora – Caitlín R. Kiernan (1964) é autora de livros de ficção científica e fantasia dark, e paleontóloga. Escreveu dez romances, dezenas de histórias em quadrinhos e mais de 200 contos e novelas. Entre seus trabalhos, destacam-se os romances Silk (1998), Threshold (2001), ambos vencedores do International Horror Guild Award, e The Red Tree (2009); a série em quadrinhos The Dreaming, spin-off de Sandman, de Neil Gaiman, com quem também escreveu a novelização de Beowulf (2007). A Menina Submersa: Memórias conquistou os Prêmios Bram Stoker e James Tiptree, Jr., este dedicado a obras de ficção científica ou de fantasia que expandem e exploram a compreensão de gênero.
A Menina Submersa pode ser comprado nas principais livrarias do Brasil, entre elas no Submarino. Adicione o livro à sua estante do Skoob!
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