Pular para o conteúdo principal

Destaques

Recomeçar

Era quando as energias estavam esgotadas que se lembrava da importância de aproveitar os bons momentos. De um instante para o outro, o humor já estava diferente e não havia muito o que pudesse fazer. Aprendera com as experiências passadas que esses acontecimentos poderiam ser passageiros e logo estaria de volta a quem realmente era. Escrevia para se lembrar de que não era a primeira nem a segunda vez que passava por aquilo. Escrevia para se lembrar de que tudo poderia ficar bem. Escrevia. Os dias pareciam mais longos. Deveria estar dormindo, mas acabara escrevendo. Precisava se escavaziar das memórias e emoções. Precisava encontrar novas significações. Precisava se esquecer dos traumas dos episódios e criar novas memórias. Ia, então, se esquecendo dia após dia... Ia se dando a oportunidade de deixar o passado para trás e não se prender nele. Ia aceitando que aprendera algumas coisas tarde demais, mas sempre haveria espaço para recomeçar. Ia se deixando vibrar no momento presente, solta...

A Vida e Morte de um Amante de Livros

*Ben Oliveira

Suas mãos coçavam com a vontade de segurar aqueles livros. Precisava ler todos. Desejava possuí-los. Gastava o dinheiro que lhe faria falta. Preferia ficar sem comer a ter que abrir mão do seu vício.

O corpo inteiro tremia de excitação só de imaginar qual seria a sensação de tê-los na sua estante. Não gostava de organizá-los em ordem alfabética, cores, tamanhos, gêneros – nada disso, gostava de como eles contrastavam e ao mesmo tempo ficavam tão bem juntos. Sentia-se realizado ao observá-los.

Livros. Adorava livros. Modernos, antigos, usados, novos, pequenos, grandes, densos, literários, técnicos. Havia algo mágico neles que o fazia sentir tanta vontade de continuar lendo e lendo, como quando você está comendo um prato tão gostoso que não consegue parar até que não reste nada e quando termina a refeição, gostaria de mais e mais. Antes mesmo de terminar uma leitura, já estava de olho em outro livro. Nostalgia e alívio se misturavam dentro dele e quando segurava sua próxima vítima, era possível ouvir o seu coração batendo com força, um sorriso cheio de vida se formando no rosto e o processo recomeçava. Tudo igual e tudo diferente.

A sensação era única demais para conseguir descrever com clareza. Nem mesmo suas companheiras letras podiam ajudá-lo. Era como nascer, viver, viajar, experimentar, conhecer, morrer, diversas vezes, em um loop infinito.

Sua apreciação era tanta que desejava aprender a dar a vida para as suas próprias histórias e vê-las de mãos em mãos, línguas, ouvidos, olhos, cabeças. Não via sentido em uma existência sem aquele objeto tão venerado e não entendia como as outras pessoas não eram loucas por livros, como ele. Se pudesse, ficaria lendo sem parar, não pararia para comer, dormir, tomar banho, escovar os dentes. Sua obsessão não tinha limites. Algum dia enlouqueceria de tanto ler, era o que costumavam dizer, como uma previsão tão óbvia quanto dizer que ele morreria um dia.

A fonte de loucura também era onde encontrava sanidade, equilíbrio, paz. Dentro da livraria ele recomeçava sua caçada. Por mais que sua vontade fosse a de levar todos os livros para casa e se deliciar com cada uma daquelas histórias, faltava-lhe tempo, saúde e dinheiro para isto. A cada dia que passava sua vontade aumentava e a dor também. Gostaria de viver dentro daquelas páginas para sempre.

Quando completou 96 anos, suas vontades foram atendidas. Deitou-se em uma caixa enorme, cercado pelos seus livros favoritos. Soterrado pelas narrativas,  ele mal conseguia respirar com tantas palavras. Fechou os olhos. Tornou-se uma página de um livro que nunca teria a chance de ler.

Mais lidas da semana