Seu medo se travestia de frieza. O amor se embelezava diante da incompletude. Qual era a razão de se envolver com aquele que poderia enxergá-lo com tamanha simplicidade, sem o desafio da conquista, de entrar num personagem qualquer? Não, alguém, certa vez, o ensinou que o verbo amar vinha acompanhado da impossibilidade. O fácil não o agradava. O bom era comezinho. É assim que se inicia esta jornada para dentro de si mesmo, de um narrador frustrado com o personagem por quem nutria um amor que não era platônico nem aristotélico, simplesmente era.
Olhei para ele. Seus olhos estavam cheios de ódio. Não sabia se era de mim ou de si mesmo. O que mais eu poderia fazer? Eu queria encostá-lo. Nosso ciclo trazia um contrato não escrito, nunca assinado, forjado pelo destino – não tínhamos o direito de reclamar, simplesmente seguir nossos papeis, como estúpidas marionetes. Éramos simulacros, representações baratas do que o oráculo cego havia desenhado para nós.
– Está tudo bem? – As palavras estúpidas escaparam pela minha boca. Queria riscá-las, queimá-las, destruí-las. Se o amor, para ele, era um jogo, eu estava deixando todos os meus navios afundarem no oceano congelado que havia se transformado o banco do carro.
– Por que não estaria?
Ele nem mesmo me olhou. A primeira denegação do dia. Pensei nas mãos fantasmas que não me encostavam, no beijo premeditado que não se concretizara, na efemeridade do nosso não-amor. Quanto mais reais as coisas se tornassem, mais ele fugiria. Aquela era a regra explícita em cada uma das idas e vindas. Como adolescente teimoso, eu sempre gostava de desafiá-la. Por que não desconstruir o seu medo? Mas a insegurança se transmutava em ódio.
Meu silêncio me engolia. As ruas perderam a luz, era como se minha alma tivesse escorregado. Eu estava ali, eu estava aqui, eu estava no não-lugar. Não era sempre assim quando se tratava de nós dois? Uma identidade borrada? Os rótulos eram deixados para as coisas que não deveriam durar. Dez anos. Dois meses. Nenhuma foto? Não até aquela noite.
Como todas as noites em que as coisas se transformam, aquela também trazia uma inquieta tempestade. A cada trovão, eu desejava que o meu coração parasse de entregar o que eu sentia. Meus olhos miravam o vazio, os espelhos invertidos que eu trazia dentro de mim. Onde eu havia errado desta vez?
– Você precisa parar de tentar me agradar. Parar de ser tão bonzinho. – Sua boca cuspia gelo em mim.
Aquela era a primeira vez que eu escutava aquilo. Como era possível alguém lhe pedir para não tratá-la bem?
– Por que você não pode ser comigo como era com os outros? Fico incomodado com a maneira que você me trata. Sempre tão preocupado, como se eu fosse de porcelana e pudesse quebrar a qualquer instante.
Em que mundo eu estava naquele segundo? Aquilo era real? Eu que sempre havia sido chamado de frio, de distante, de ilha, agora era visto como um clichê romântico. De que adiantava explicar que eu não estava interpretando nenhum personagem, que aquele era eu mesmo? E quando alguém não suporta quem você realmente é, por que se dar ao trabalho de mudar? Trocar sua essência por uma máscara, somente para agradar, parecia errado em tantas maneiras.
Minhas mãos se transformaram em pedras. Meus olhos opacos como plástico. O peito era o único que rugia como um dragão, desejando poder quebrar o vidro e voar para longe. Longe dele, de mim mesmo, do roteiro escrito para nós dois.
Conversas mecânicas, toques reproduzidos. Um adeus prematuro. Um beijo seco. Um corpo pesado de tantas mágoas que circulavam em suas veias. Os olhos de plástico derreteram e deformavam o rosto. A sensação de Déjà vu. Quantas vezes mais? Quantas vezes até ele perceber que o destino continuará nos empurrando um contra o outro? A ironia de procurar se sentir bem com quem te causou mal.
Como toda tragédia, o narrador se transformava num herói incapaz de fugir dos eventos que lhe estavam destinados. Até que a serpente devorasse a própria cauda. As lágrimas de medusa não podiam curá-lo. Sangrar a alma de quem o entregara ao demônio do vazio não estava previsto no roteiro.
Feche os olhos, criança. Tudo vai ficar bem. E se não ficar, seu amor ainda estará no não-amor.
Mais uma vez o escritor Ben Oliveira nos surpreende:
ResponderExcluir"Os rótulos eram deixados para as coisas que não deveriam durar."
Excelente observação... muito boa a crônica.
Parabéns.
Atenciosamente:
Paulinho Dhi Andrade
Olá, Paulinho!
ExcluirGrato pela sua visita. Fico feliz que tenha gostado do texto.
Abraços