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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: O Doador de Memórias – Lois Lowry

O Doador de Memórias (The Giver) é o primeiro livro da série O Doador (The Giver Quartet) escrito por Lois Lowry, publicado em inglês, em 1993, traduzido para o português e publicado no Brasil, com tradução de Maria Luiza Newlands, pela Editora Arqueiro, em 2014, de 192 páginas. Para quem gosta de distopias para jovens adultos, a primeira novela não decepciona e mesmo em extensão menor (por causa do gênero) em relação a livros mais longos (romances), com tantos acontecimentos simultâneos, o leitor é transportado para esta sociedade esterilizada.


Para encontrar a ordem e a paz na vida em sociedade, os governantes precisaram criar algumas regras. E é nesta comunidade em que vive o protagonista da primeira novela, Jonas, um adolescente que está ansioso para saber qual será o seu destino. Cada cidadão é designado a uma função (Atribuição) e quando a Cerimônia está chegando, cada um dos amigos e colegas são chamados, mas o jovem Jonas é deixado por último.

“Jonas juntou as mãos e aplaudiu, mas foi um gesto automático, sem sentido, do qual nem teve consciência. Sua mente bloqueou todas as emoções anteriores: expectativa, excitação, orgulho, até o coleguismo feliz com seus amigos. Agora só sentia humilhação e terror”.

Quem já assistiu ao filme tem ideia sobre a função de Jonas... Aliás, não é preciso ir tão longe. O próprio texto presente na orelha do livro já entrega. Jonas é escolhido para ser o Recebedor de Memórias e junto com o Doador de Memórias, ele é treinado para receber as lembranças, sensações e demais elementos que foram varridos da comunidade em que vive. É interessante notar a relação que o ‘equilíbrio’ da sociedade de O Doador de Memórias só é mantido por causa desta tentativa de homogeneizar tudo, não necessariamente por se buscar o caminho do meio.

O amor, o ódio, a paixão, a raiva – qualquer emoção forte que possa ser responsável por transformar o ser humano – é desconhecida pelos cidadãos da Comunidade, com exceção do mentor de Jonas, conhecido como O Doador de Memórias. À medida que o universo de Jonas começa a se expandir – analogia interessante com a leitura e a capacidade de conhecer novas perspectivas, através da viagem em histórias –, o rapaz se sente mais distante de sua família e amigos, pois apesar de ser proibido mentir, o Recebedor de Memórias tem a permissão de ocultar as informações e conhecimentos que ele tem aprendido no treinamento.

“O que você vai enfrentar agora, porém [...] será dor de tal magnitude que nenhum de nós pode compreender, porque está além de nossa experiência. O próprio Recebedor não foi capaz de descrevê-la, só nos lembrou que você teria de enfrentá-la, que precisaria ter imensa coragem”.

Lois Lowry explora a perspectiva linguística. Dentro da Comunidade há toda uma educação, moral e orientação dos moradores sobre quais termos usar ou não (adequação da linguagem), bem como uma tentativa de abolir os signos das emoções que são evitadas durante anos pela Comunidade e substituí-los por sinônimos mais leves. Ainda sobre o papel da linguagem na construção da narrativa e de visão do mundo do personagem principal, a autora consegue cativar o leitor ao transmitir a sensação de quando ele enxerga as primeiras cores, por exemplo – o que no filme, fica muito mais evidente, pois grande parte da fotografia é em preto-e-branco até o momento de transição para as cores vivas. Colocar no papel essas ideias e fazer o leitor imaginar, observar, sentir torna-se um processo bem mais delicado e que exige mais maestria por parte da escritora do que no cinema.


O Doador de Memórias é narrado em terceira pessoa, mas o leitor acompanha o ponto-de-vista de Jonas. A narrativa é linear e talvez por ser o primeiro livro da série, é como se a autora estivesse tentando fisgar o leitor gradualmente, sem dar mais informações do que o necessário. O texto é bem enxuto, sem floreios na linguagem. Mesmo em 3ª pessoa, Lois Lowry não explorou as sensações, pensamentos e outros pontos que poderiam ser usados para o leitor simpatizar e interagir com os outros personagens.

A luta para escolher as palavras pelo protagonista e a maneira que ele vai se transformando ao longo da novela é envolvente. É como acompanhar o desenvolvimento de uma pessoa, desde sua infância até a fase adulta, na qual cada uma das fases é responsável pela aquisição de diferentes habilidades relacionadas à aquisição da linguagem, autonomia, identidade e formação de cidadãos ativos. A cada sensação, palavra e memória que Jonas vai adquirindo, novos desejos surgem e esta transformação pode colocar em perigo sua própria vida por causa dos segredos e lembranças que os seus amigos e familiares não têm ideia de como realmente funciona o sistema.

“E ele enxergava, apesar de seus olhos estarem fechados. Um turbilhão brilhante de cristais rodopiava no ar ao seu redor. Esses cristais se acumulavam no dorso de suas mãos, como um pelo frio”.

Para quem gostou do filme O Doador de Memórias, ao final da edição brasileira foi disponibilizada uma entrevista com a cantora Taylor Swift que interpretou a Recebedora de Memórias anterior ao Jonas, Rosemary. O livro também traz um fragmento do segundo livro da série, A Escolhida. O Doador de Memórias proporciona uma leitura rápida e prazerosa, com inúmeras possibilidades de intertextualidade com outras obras de distopia e de ficção científica (seja na literatura, cinema ou televisão), enriquecendo a experiência.

Difícil é não se identificar com Jonas, afinal, todo leitor acaba se sentindo como ele, quando passa por um período de mergulhos nos livros e não encontra com quem conversar sobre o assunto (quando não tem outros amigos e colegas leitores), é como se durante a leitura, literalmente, absorvêssemos memórias, histórias e vivências que mesmo fictícias, nos tocam pela verossimilhança. Não tem como não pensar no tão batido (mas ainda necessário) ponto: de que o conhecimento transforma as pessoas. Portanto, seja época de guerra ou de aparente paz (manipulação), no universo fictício ou real, os livros são sempre vistos como a salvação para uns e perigo para outros.


Sobre a autora – Lois Lowry é autora de mais de 30 livros para jovens adultos, como os da popular série de Anastasia Krupnik. Foi agraciada com inúmeros prêmios, entre eles o Boston Globe-Horn Book, o Dorothy Canfield Fisher, o Mark Twain, a Medalha California Young Readers e a Medalha John Newbery, concedida pela Association for Library Service to Children, uma divisão da American Library Association. Lois Lowry divide seu tempo entre sua casa em Cambridge e uma fazenda em Maine. O Doador de Memórias é o primeiro da série formada também por Gathering Blue (A Escolhida), Messenger e Son.

O livro O Doador de Memórias pode ser encontrado no site das livrarias Submarino, Saraiva, Cultura, Amazon e Livrarias Curitiba

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