Não havia talvez quando se tratava de pôr a própria saúde mental em primeiro lugar, especialmente quando o outro a estava negligenciando. Não havia talvez para continuar sustentando um relacionamento que não ia para frente, no qual o outro se negava a se responsabilizar e se colocava constantemente no papel de vítima. Não havia talvez quando você havia se transformado em uma espécie de terapeuta que tinha que ficar ouvindo reclamações e problemas constantes, se sentindo completamente drenado após cada interação. Já não havia espaço para o talvez. Talvez as coisas seriam diferentes se o outro tivesse o mesmo cuidado com a saúde mental que você tem. Talvez a fase ruim iria passar um dia. Talvez a pessoa ia parar de se pôr como vítima e começar a se responsabilizar. Eram muitos talvez que não tinha mais paciência para esperar. Então, não, já havia aguentado mais do que o suficiente. Não era responsável por lidar com os problemas do outro. Não era responsável por tentar levar leveza diante...
Nossas percepções do mundo são moldadas por nossas habilidades cognitivas, o que, muitas vezes, também formam a visão que os outros têm de nós, especialmente em sociedades em que as pessoas têm dificuldade de ter empatia e respeito por pessoas diferentes. No livro Flores para Algernon (Flowers for Algernon), o escritor Daniel Keyes narra a história de Charlie, um rapaz com deficiência intelectual grave (no livro descrito como retardo mental) que é convidado a participar de uma cirurgia capaz de aumentar seu quociente de inteligência. No Brasil, a obra foi publicada pela Editora Aleph, em 2018, com tradução de Luisa Geisler.
Flores para Algernon é uma leitura desconfortável, já que à medida que o personagem principal toma consciência da maneira que ele é tratado pelos outros, é difícil não sentir sua dor e refletir sobre como o preconceito e a discriminação estão enraizados na sociedade.
Quem você se torna quando deixa de ser o que os outros esperavam de você? O livro lança Charlie em uma dolorosa e curiosa jornada de autodescoberta, na qual ele acaba se dissociando de sua identidade e ao mesmo tempo sabendo que não importa para onde ele vá, Charlie continuará com ele. O personagem adota a terceira pessoa na hora de relembrar suas memórias.
“Tenha paciência. Não se esqueça de que está realizando em semanas o que outros demoram uma vida inteira. Você é uma esponja gigante absorvendo conhecimento. Logo vai começar a conectar as coisas, como degraus em uma escada gigante. E você vai subir cada vez mais alto para ver cada vez mais do mundo ao seu redor”– Daniel Keyes, Flores para Algernon
Narrado em uma forma de relatórios de progresso escritos por Charlie para o experimento científico, o livro mostra desde os primeiros dias do experimentos, nos quais fica bem visível a dificuldade de comunicação escrita do personagem e de entender quais são as propostas dos testes e acompanhamentos.
Do jovem tratado ora com pena, ora com humilhações pelos outros, quando a cirurgia de Charlie e os seus esforços para absorver novas informações e conhecimentos começam a dar resultado, é possível perceber a transformação na escrita, na sua autopercepção e na sua maneira de se relacionar com o mundo.
“Ele comete o mesmo erro que os outros quando olham para uma pessoa de mente débil e riem porque não entendem que existem sentimentos humanos envolvidos. Ele não percebe que eu era uma pessoa antes de vir para cá. Estou aprendendo a controlar meu ressentimento, a não ser tão impaciente, a esperar por coisas. Acho que estou crescendo. Cada dia aprendo mais e mais sobre mim, e as memórias, que começaram como pequenas ondulações na água, agora me inundam como tsunamis...” – Daniel Keyes, Flores para Algernon
Desde suas interações com Algernon, um rato que passou pelo mesmo experimento antes dele, até pessoas do seu trabalho, profissionais envolvidos no seu projeto e demais indivíduos, Charlie se vê diante de uma série de dilemas e precisa desconstruir as crenças que ele formulou sobre si mesmo, a inteligência e como sua vida seria melhor se ele não tivesse deficiência intelectual.
Charlie luta com uma série de pensamentos paradoxais e emoções conflitantes. A dor de que não importa quanta inteligência ele tenha, algumas coisas não podem ser mudadas e os seus fantasmas do passado continuam o assombrando. Um dos desafios do personagem é o de tentar alinhar o desenvolvimento emocional com sua atual condição neurológica, mas seja pelos seus traumas e cicatrizes da alma ou pelo processo artificial e veloz de elevação do quociente de inteligência, além das reações adversas esperadas e inesperadas do experimento, Charlie acaba descobrindo que a existência humana é imprevisível para todos.
“Tenho de perceber que, quando eles continuamente me incomodam para falar e escrever apenas para que as pessoas que leem esses relatórios me entendam, eles falam de si mesmos também. Mas é assustador compreender que meu destino está nas mãos de homens que não são os gigantes que um dia imaginei, homens que não têm todas as respostas” – Daniel Keyes, Flores para Algernon
Publicado originalmente em formato de conto em 1959, posteriormente como um romance em 1966, Flores para Algernon ganhou dois prêmios literários, um de melhor conto para o prêmio Hugo e outro de melhor romance para o prêmio Nebula. Daniel Keyes escreveu uma história com questões perturbadoras que nos faz refletir sobre ética, ambição, aceitação, preconceitos e segregação sofridos por pessoas com deficiência intelectual, vergonha e culpa.
Apesar de ter sido publicado originalmente há mais de 50 anos, o livro Flores para Algernon permanece relevante, afinal, o preconceito e a rejeição ainda fazem parte de nossa realidade e muitas pessoas são tratadas de forma desumanizada em suas casas e instituições.
Sobre o autor – Nascido no Brooklyn, em Nova York, Daniel Keyes foi graduado e mestre pela Brooklyn College. Publicou oito livros, e o seu maior sucesso foi Flores para Algernon, com mais de 5 milhões de exemplares vendidos. Também trabalhou como comerciante marinho, editor, professor de ensino médio e professor universitário na Universidade de Ohio, onde foi condecorado com o título de Professor Emérito em 2000. Ganhou os prêmios literários Hugo e Nebula por seu trabalho como escritor e, em 2000, foi escolhido como Autor Emérito pela Science Fiction and Fantasy Writers of America (Escritores de Ficção Científica e Fantasia da América). Faleceu em 2014.
*Ben Oliveira é escritor, blogueiro e jornalista por formação. É autor do livro de terror Escrita Maldita, publicado na Amazon e dos livros de fantasia jovem Os Bruxos de São Cipriano: O Círculo (Vol.1) e O Livro (Vol. 2), disponíveis no Wattpad e na loja Kindle.
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