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Destaques

Desarmando alarmes

Relaxar é muito mais fácil na teoria do que na prática. Desarmar o sistema de alarmes da ansiedade que, vez ou outra, pode apitar ainda que nada esteja acontecendo. É somente ao aceitar se soltar do peso de estar alerta o tempo inteiro que conseguia aproveitar o momento presente. Não poderia fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Era abrindo mão do controle que se permitia encarar as coisas como elas eram. O excesso de controle não faria o problema desaparecer. Pelo contrário, muitas vezes precisava de uma distância saudável para se autorregular.  O medo e a ansiedade significavam que era algo que precisava prestar atenção, mas também eram lembretes de não levar tão a sério. No final das contas, estar bem era muito mais do que não estar em crise. O excesso de ansiedade poderia dar uma falsa ilusão de que tudo estava sob controle, mas era ao abrir a mão e confiar que conseguia voltar a viver: era mais do que um diagnóstico. Ao mover a atenção, pouco a pouco ia se permitindo viver o aq...

Resenha: Sufoco – Ricardo Bellissimo

Sufoco é o romance thriller do escritor brasileiro Ricardo Bellissimo, publicado em 2008, pela Via Lettera Editora. O protagonista do livro é Ademir, um jovem de 17 anos que trabalha em uma pizzaria e participa de um esquema de tráfico de drogas, onde ele vende as pizzas e as drogas sem o dono da pizzaria desconfiar.

Ricardo Bellissimo consegue captar bem a essência dos seus personagens. Além de Ademir, a narrativa também conta a história de Gláucia e Helô. Os três personagens são moradores do Jardim Macedônia, periferia de São Paulo. Com a sua linguagem ácida, estilo do escritor Ricardo Bellissimo, a vida dos seus personagens são narradas sem hipocrisias e com uma naturalidade tão grande que em alguns momentos é possível se perguntar se o livro não se trata de um livro-reportagem e se Ademir, Gláucia e Helô não são simplesmente frutos da imaginação do autor, mas pessoas de carne e osso.

O primeiro parágrafo do livro Sufoco já é um convite para o leitor continuar se aventurando pelas páginas. O narrador descreve uma morte, levando a pessoa que está lendo a se questionar quem morreu, por que e quem foi o responsável pelo assassinato. A cena é instigante, na qual se imagina lama, sangue e um cadáver.

Ao longo das páginas, a narrativa em terceira pessoa mostra o ponto de vista dos protagonistas e o narrador mergulha no âmago dos personagens, descrevendo sem limitações os seus desejos, sonhos, falhas, crenças, objetivos, frustrações, vícios, fantasias e obsessões. Tudo é descrito com tanta precisão, que é como se o narrador estivesse observando não só o dia-a-dia de suas personagens, mas também as dissecando e observando o que se passa em suas mentes e almas.

A barreira entre ficção e realidade, às vezes, desaparece. Os personagens de Sufoco são redondos – tridimensionais (com características sociológicas, fisiológicas e psicológicas bem exploradas), dando mais consistência à narrativa e se aproximando da vida real. Ademir, por exemplo, é um jovem que se envolve com o tráfico de drogas, mesmo sabendo da história de sua família e do sofrimento que a mãe passou por causa do pai alcóolatra e da irmã prostituta. Mais do que uma forma de ganhar dinheiro, Ademir encontrou no tráfico uma maneira de sustentar o seu vício de cocaína.

Depois de Ademir que é o protagonista anti-herói do livro, sua namorada Gláucia e a vizinha e colega de trabalho dela Heloísa roubam a cena com suas personalidades. Embora oriundas da mesma periferia, cada uma tem visões e ambições diferentes. Gláucia e Helô são operadoras de telemarketing de uma grande empresa, enquanto a primeira está sempre reclamando de tudo, odeia ligar para as clientes oferecendo serviços e produtos que nem mesmo ela gosta e não consegue parar de pensar no namorado Ademir, a segunda é ambiciosa e narcisista, uma mulata que deseja ser notada pelos homens poderosos da empresa, se dedica no trabalho para subir na vida e sonha em conquistar um lugar ao lado do presidente da empresa e sair de vez da periferia.

O escritor consegue mergulhar de uma forma intensa nos personagens e trazer à tona o que os torna tão atraentes e repulsivos ao mesmo tempo. Dentro de uma mesma periferia, os sonhos são diferentes, no entanto Ricardo Bellissimo retrata fielmente a influência dos meios de comunicação de massa, como as novelas televisivas, os programas religiosos e os filmes têm na vida dos personagens, além da religião que é vista como a responsável por resolver os problemas, confortar e tirá-los da miséria. Embora seja escasso ou vindo de forma ilegal, o dinheiro é valorizado como um Deus pelos personagens principais e a luxúria está atrelada a cada pensamento.

Os conflitos surgem na narrativa desde o início. Ademir, por exemplo, lida com a morte de colegas e, às vezes, ele mesmo precisa colocar o fim na vida de alguém para não estragar o seu esquema de drogas. A vida dos personagens do livro muda desde o dia em que Ademir cruza pela primeira vez com Renatinha, uma jovem loira de classe alta que comprou drogas com ele e por quem ele se encantou. Renatinha é o catalisador do drama.

Um jogo de ciúmes, vingança, mentiras e ambição começa. O leitor não consegue parar de ler até saber qual é o desfecho da história. Ricardo Bellissimo descreve situações em que os personagens seguem seus instintos e participam de eventos chocantes, mas com os pés na realidade. Um thriller que encanta pelo suspense e pelas emoções atrás dos personagens e apresenta tantas informações de fundo, que o leitor se surpreende pela maneira que o narrador conhece bem a história e a vida dessas pessoas, dando aquela sensação de que antes mesmo do que foi contado no livro, as personagens já tinham uma vida.

Ricardo Bellissimo consegue manter o interesse do leitor e mostra como sua bagagem cultural e habilidades de observar e contar histórias podem fazer toda a diferença na hora de escrever. Do começo ao final do livro todos as sub-tramas são resolvidas, não deixando nenhuma ponta solta, impressionando o leitor com o timing e autenticidade. O leitor ora torce pelos delírios dos personagens, ora os enojam, tudo menos a indiferença. Um choque página após página. Sufoco é o tipo de livro para quem não curte hipocrisias e não tampa o sol com a peneira, para quem enxerga sombras na luz e sabe que nem tudo o que brilha é valioso. A verdade fria, dura e sangrenta, da realidade da periferia, mas que também é repleta de sonhos, paixões e amores.

Sobre o autor – Ricardo Bellissimo nasceu em 1969, na cidade de São Paulo. Escritor, jornalista e historiador. Livros publicados: a novela Libido Siamesa (vencedora do prêmio I Festival de Literatura Universitária, 1998), o romance Sombras e Nefastos (2003), o romance Sufoco (2008) e Negro Amor.

Sobre a Editora – Fundada em 1997, por dois profissionais do mercado editorial, Monica Seincman e Jotapê Martins, a Via Lettera sempre buscou oferecer uma linha de publicações diversificadas e de amplo alcance cuidadosamente traduzidas e editadas.

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