É incrível o quanto podemos aprender com
ensaios, cartas e palestras. Assim foi a aula que eu tive com o livro
A Consciência das Palavras, do autor
Elias Canetti, de 323 páginas, com tradução de Márcio Suzuki e Herbert Caro, publicado no Brasil, em 2011, pela
Companhia das Letras.
Os ensaios alemães escritos por Canetti abordam a vida de diversos autores, como Karl Kraus, Franz Kafka, Tolstói, Dr. Hachiya, Georg Büchner, Hermann Broch e até mesmo a relação entre Hitler e o arquiteto Speer. Mesmo com o conhecimento básico sobre algumas dessas personalidades até o total desconhecimento de outras, Elias Canetti dá um vislumbre da vida desses homens – aliás, está aí um fato que só agora me dei conta, todas as pessoas estudadas eram do sexo masculino, o que demonstra a necessidade de entender as relações entre poder, sobrevivência e metamorfose.
Não pretendo abordar cada ponto do livro, pois seria tarefa exaustiva demais, tanto para mim quanto para você que está lendo; pelo contrário, o que eu quero mostrar é o ponto que liga todas essas pessoas estudadas pelo autor. Algumas ideias ressoam, como a guerra, as transformações internas e externas, o amor e a paixão, o poder das palavras, a relação entre construção e destruição, e, é claro, a vida!
O que Hitler teria de tão cativante para ter persuadido tantas pessoas? No livro, Canetti aborda o arquiteto que trabalhou para Hitler, Speer, e a necessidade de que o líder do nazismo tinha de se sentir no controle. A ambição de Hitler era o que o movia. Canetti descreve bem como o nazista tinha uma obsessão pelo poder, por construções enormes, por controlar a massa, escravizá-la e exterminá-la, bem como sua vontade de destruir tudo aquilo que o fizesse se sentir menor. Não se pode negar o poder que Hitler tinha sobre os outros, mas por trás de tamanhas atrocidades, se escondia um homem frágil e estrategista que sabia a importância de não se aproximar de outras pessoas que pudessem encontrar os seus pontos fracos, pois ele sempre deveria se sentir a autoridade máxima.
Ainda se tratando das guerras, Elias Canetti contou como esses eventos foram determinantes na vida dos escritores acima citados. Um dos mais fascinantes ensaios foi o sobre o Dr. Hachiya, um médico japonês que sobreviveu à tragédia da bomba atômica de Hiroshima e descreveu os rastros de destruição. É incrível como Canetti sente-se seduzido pelo respeito que o homem tinha com os mortos, bem diferente dos outros médicos que foram ajudar a cremar os cadáveres na região. Mesmo diante dos horrores de Hiroshima, Hachiya transformou as palavras, e numa espécie de diário conseguiu transportar os leitores para aquele ambiente que cheirava a sardinhas queimadas. Diante da morte e das consequências da guerra, o médico japonês narra o vale dos mortos, sem deixar de honrar e orar pelas vítimas.
"... Escrever significa abrir-se em demasia. [...] Por isso, não há nunca suficiente solidão ao redor de quem escreve; jamais o silêncio em torno de quem escreve será excessivo, e a própria noite não tem bastante duração" – Franz Kafka
Das destruições externas vamos às guerras interiores. E não seria a paixão uma das principais responsáveis por tirar a paz de um homem? Elias Canetti apresenta ao leitor alguns trechos do diário e cartas escritas por Franz Kafka. É interessante observar como o escritor tcheco, autor do seu livro imortalizado, A Metamorfose, se sentisse exatamente como o seu personagem que se transformou em um inseto. A partir dessas correspondências de Kafka com Felicia, aprende-se a influência da personalidade do autor em seus textos. Três coisas me chamaram a atenção no ensaio sobre Kafka: como ele se enxergava frágil e pequeno diante dos outros; suas atitudes contraditórias: ao mesmo tempo em que sentia necessidade de saber tudo sobre Felicia e queria mantê-la por perto, ele sabia que ao se entregar a ela, o seu processo de criação literária estaria perdido; por último, como esses eventos de sua vida se imortalizaram em sua escrita, num processo de cristalização das palavras, na qual Kafka e seus livros são um produto de sua própria metamorfose.
Ainda sobre a fragilidade do escritor e sua necessidade de solidão, Canetti aborda a vida do escritor russo Tolstói. Separar a ideia do autor e sua vida parece algo improvável. São nos diários de Tolstói que o leitor conhece sua essência. “Sua força reside no fato de que ele não se deixa persuadir: precisa de experiências próprias, intensas, para chegar a novas convicções”.
No ensaio “Poder e Sobrevivência” o autor descreve esses dois pontos constantes na vida do ser humano. Aliás, ao longo do livro todo, em todas as cartas, ensaios e palestras, Canetti discorre sobre o assunto de forma indireta. O medo e a impotência diante da guerra, o horror despertado pela morte, a fragilidade do homem e os efeitos do poder.
O papel do poeta é analisado por Canetti que descreve esses artistas como os responsáveis por ver o mundo como ele é e se transformarem em guardiões das metamorfoses.
“Para dizer algo sobre este mundo que tenha algum valor, o poeta não pode afastá-lo de si ou evitá-lo. Tem de carregá-lo em si enquanto caos, o que é mais do que nunca, a despeito de todas as metas e planejamentos, pois o mundo se move com velocidade crescente em direção à própria destruição”. Além do ensaio escrito pelo próprio autor sobre o ofício do poeta, ao contar a vida de poetas, suas manias e medos e o papel dos relacionamentos com suas amantes, Elias Canetti dá uma aula sobre esses transformadores das palavras.
Quem é que nunca leu alguma frase de Confúcio na internet? O autor conta um pouco sobre a vida do pensador e filósofo chinês, a sua afeição pelo aprendizado e pelo entendimento da vida. Um fato interessante comentado por Elias Canetti é o de que mesmo sendo um entendedor do comportamento humano, Confúcio não se arriscava a falar sobre a morte. O pensador também tinha aversão ao poder e ao tratamento das pessoas como meras ferramentas.
No ensaio “O primeiro livro: Auto de fé”, o escritor conta como foi o processo de criação literária do seu romance. Sua estadia em Viena foi o que o influenciou a escrever a obra, ao presenciar um homem desesperado pelos autos que estavam sendo queimados, durante uma manifestação. “Já se passaram 46 anos, e ainda trago em mim a excitação daquele dia. Foi a coisa mais próxima de uma revolução que já vivenciei de corpo presente. Centenas de páginas não seriam suficientes para descrever o que vi com meus próprios olhos”. Novamente, entra aqui a influência dos eventos históricos na produção literária. Meu trecho favorito do ensaio foi:
“Um dia, ocorreu-me que o mundo não podia mais ser representado como nos romances antigos, do ponto de vista de um escritor, por assim dizer: o mundo estava fragmentado, e só a coragem de mostrá-lo em sua fragmentação tornaria ainda possível uma verdadeira representação dele. Isso não significava, todavia, que seria necessário lançar-se a escrever um livro caótico, no qual nada mais pudesse ser entendido; pelo contrário, era preciso inventar, de maneira consequente e com o máximo rigor, indivíduos extremos, tais como aqueles de que já era mesmo constituído o mundo, e colocar tais indivíduos – levados às últimas consequências – lado a lado, em toda a sua diversidade”.
Além de escrever sua criação literária, o autor conta como foi sentir-se rejeitado quando os editores não se interessaram pela publicação de seu romance, até que alguns anos depois, a obra foi publicada, proporcionando-o alguns elogios.
Bom, é isso. Espero ter transmitido um pouco do que se encontra em A Consciência das Palavras, através desses recortes. Impossível seria fazer uma resenha que fizesse juízo ao seu conteúdo, já que cada um dos ensaios permitiria múltiplas interpretações devido à riqueza do conhecimento transmitido. É importante notar que mesmo alguns ensaios se tratando de autores com os quais eu nunca tive nenhum contato prévio, assim que terminei de lê-los, senti como se os conhecesse, mergulhei em seus íntimos e me transformei. Canetti tem esse dom de contar a história de uma história, sem torná-la maçante, pelo contrário, fazendo cada uma desses vivências acrescentarem algo a sua vida.
"Tranquilizar-me talvez seja a principal razão porque escrevo um diário. É quase inacreditável o quanto a frase escrita pode acalmar e domar o ser humano" – Elias Canetti
Ao entender o processo de outros escritores, mergulhei no meu próprio íntimo. Quantas vezes não me senti perdido, incompreendido, maluco? Esse contato com os diários, cartas e ensaios de outros autores, me fez perceber que neste rico universo das palavras, há muitos assuntos e vidas que se interpenetram. Compreender o outro é também uma oportunidade de buscar o autoconhecimento. Vi um pouco de cada um desses escritores em mim e nessa identificação, ao visualizar suas metamorfoses, acabei me transformando junto. Ter consciência das palavras, para quem é escritor, é o mínimo que se pode procurar, diariamente. Afinal, entendendo a relação entre o nosso subconsciente, as memórias e a escrita, podemos ao menos tentar aproveitar o máximo potencial da magia das histórias.
Sobre o autor – Elias Canetti nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o Prêmio Büchner, em 1975 o Prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o Prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida, Uma luz em meu ouvido e O jogo dos olhos, já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé, os relatos As vozes de Marrakech e o ensaio Massa e Poder, este último pela Companhia das Letras.
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