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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: Tempo é Dinheiro – Lionel Shriver

O livro Tempo é Dinheiro (So Much For That), da escritora Lionel Shriver, é um desses romances com as doses certas de acidez e realismo que te fazem refletir sobre a própria vida. A obra, de 464 páginas, foi traduzida para o português por Vera Ribeiro e publicada em 2012, pela Editora Intrínseca.

Capa do livro Tempo é Dinheiro, da autora Lionel Shriver
Eu não sei dizer qual dos títulos me cativou mais, se a adaptação brasileira “Tempo é Dinheiro” ou o original “So Much For That” – ambos refletem uma ironia sobre a trama. O romance conta a história de Shep, um homem que a vida inteira guardou dinheiro para realizar o seu sonho de se mudar para outro país, onde os gastos fossem mínimos comparados à quantidade de dinheiro gasto nos Estados Unidos no dia-a-dia, dos impostos, e tudo mais. No entanto, sempre que ele tentava contar aos outros o seu desejo, ninguém o levava a sério.

Além de Shep, o livro também conta a história da esposa dele, Glynis, uma mulher rígida como o metal, material que ela utilizava para fazer suas artes. O melhor amigo do protagonista, Jackson é um homem inconformado com o sistema, com o excesso de impostos e sonha em escrever um livro expondo como o governo suga as economias dos cidadãos. A esposa dele, Carol é uma mulher centrada, que além de suporta o pessimismo do marido, tem uma filha com Disautonomia Familiar (Síndrome de Riley-Day) para cuidar.

“Quase nunca ouvi você se queixar de nada. Recomendo que pratique um pouco mais. Não é bom o sujeito receber de cabeça baixa toda bosta que a vida joga em cima dele”.

Apresentados os personagens principais da história, o leitor se surpreende desde as primeiras páginas até as últimas, literalmente, e eu não digo isso só por falar. Quando Shep, finalmente, obtém a coragem para contar à esposa que quer se mudar para um lugarzinho na África, chamado Pemba, onde os custos diários seriam de menos de 10 dólares, acontece a primeira reviravolta do romance, a qual mudará completamente a vida do protagonista: Glynis está com um câncer raro.

Ao longo dos capítulos acompanhamos o dinheiro de Shep diminuir cada vez mais. O que ele pode fazer? Todas as economias ao longo dos anos, para viver A Outra Vida, começam a serem gastas com os tratamentos do câncer de Glynis, já que o seguro de saúde não cobre as despesas.  Shep coloca os próprios desejos de lado para cuidar da mulher, está sempre faltando ao trabalho, embora ela permaneça inflexível e por vezes, cruel com ele, não só por causa da doença, mas por causa de sua personalidade forte.

Na família de Jackson a situação não é tão diferente. O homem tem que lidar, diariamente, com as inseguranças em relação ao próprio casamento, com a filha com Disautonomia Familiar (DF), Flicka que deseja colocar um fim no sofrimento dela e dos pais e com a filha mais nova Heather que toma um placebo, por causa dos ciúmes que sente da irmã mais velha, para se sentir especial também.

“Nunca se sabe que tipo de vida alguém pode valorizar, mesmo que a própria pessoa ache que não a aguentaria. Na verdade, ela pode estar enganada. Talvez aguentasse. A pessoa nunca sabe o que se disporia a suportar, se a alternativa fosse nada”.

Tempo é Dinheiro está repleto de críticas à sociedade capitalista norte-americana, na qual a imagem transmitida a todos os países é sobre os seus benefícios, o maldito sonho americano, quando a realidade é mais podre do que parece. Resumindo em poucas palavras, um país onde as pessoas se matam de trabalhar a vida inteira, só para descobrirem que nunca terão finanças suficientes para desacelerarem e aproveitarem suas existências.

O romance também traz uma crítica sobre a família na pós-modernidade. A filha de Glynis, Amelia não sabe como reagir diante da doença da mãe e o filho, Zach parece ser incapaz de demonstrar os seus sentimentos e solidariedade diante dos problemas que a família está passando. Shep está falindo e não há a quem possa recorrer, a doença da mulher, os pedidos de ajuda da irmã, as contas do asilo do pai, tudo aquilo o faz afundar cada vez mais.

Jackson, por outro lado, também deu um jeito de se endividar, por causa de uma insegurança com o seu próprio corpo e tentativa desesperada de agradar à mulher, conseguindo exatamente o contrário.
O que os dois homens têm em comum? Ambos são frágeis. Enquanto Shep está sempre tentando fazer a coisa certa, mesmo que para isso tenha de se machucar, Jackson está constantemente reclamando sobre a vida. Os conflitos internos dos personagens são bem desenvolvidos, fazendo o leitor simpatizar pelos seus problemas e ficar curioso para saber qual fim terá.

Então, não vou falar mais sobre a história para não estragar a surpresa de ninguém. Tudo o que eu posso adiantar é que o realismo da escrita de Lionel Shriver é de uma sinceridade assustadora, num tempo onde as pessoas preferem mergulharem dentro de suas ilusões.

“As decisões levam uma fração de segundo. Não decidir é que consome o tempo todo”. 

Algumas das passagens dos livros marcantes que nos fazem refletir: a incapacidade das pessoas de lidarem com uma doença como o câncer – Glynis está cada vez mais sozinha, e todos que supostamente deveriam ajudá-la se afastam, tendo que contar com a simpatia, por exemplo, da vizinha, com quem não tinha nenhuma intimidade ou de como muitas pessoas tentam dar um falso apoio, não preocupados com o doente, mas para aliviarem as próprias consciências; Os gritos de socorro silenciados dentro dos personagens, que uma hora ou outra iriam fazê-los pagarem seus próprios preços e se libertarem; Os valores que o dinheiro e o tempo possuem em nossas vidas, mesmo que a tentação de ignorá-los seja grande, os dois sempre dão um jeito de mostrarem suas forças; Como estamos condenados por um sistema e dificilmente conseguimos sair de nossos próprios ciclos de autodestruição, muitas vezes, nos apoiando em situações drásticas para finalmente obter a coragem de fazer e dizer o que sempre tivemos vontade.

Recomendo a leitura de Tempo é Dinheiro para quem deseja entender um pouco a força do capitalismo em nossas vidas; como ficamos presos no ciclo de excesso de trabalho e dívidas, mas também de estarmos tão presos em nossos próprios egoísmos, que nos esquecemos dos outros, afinal, isso nos custa tempo e dinheiro, e os dois são valiosos demais para serem “desperdiçados” com qualquer um. A sinceridade ácida da Lionel Shriver neste livro me lembrou do livro Clube da Luta, escrito por Chuck Palahniuk, de uma forma mais assombradora, pela identificação ser muito maior e seus personagens serem ‘pessoas comuns’. E no final a pergunta que ecoa na mente do leitor é: “Quanto custa a vida de uma pessoa?”.

Autora Lionel ShriverSobre a autora – Lionel Shriver é autora de Dupla Falta, O mundo pós-aniversário e Precisamos falar sobre o Kevin. Este último, vencedor do Prêmio Orange de 2005, foi considerado o melhor entre os livros contemplados com essa premiação. Best-seller mundial, alçou a autora ao status de fenômeno literário e teve sua adaptação para o cinema dirigida pela premiada diretora escocesa Lynne Ramsay. Entre seus livros não publicados no Brasil estão A Perfect Good Family e Game Control. Ela vive em Londres e é colunista do jornal britânico The Guardian.

Comentários

  1. Adorei a resenha, está bem completa e detalhada, me interessei pelo livro e já o coloquei na minha wishlist :)

    www.a-book-devourer.blogspot.com

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    1. Olá, Letícia! Obrigado pela visita e comentário!
      Fiz o possível para deixar a resenha completa, sem estragar todas as surpresas dos leitores. As reviravoltas são emocionantes! E confesso que chorei no final do livro.
      Abraços e volte sempre!

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  2. Oi Ben. Vi uma frase esses dias e ela me marcou muito: "Quem mata tempo não é assassino. É um suicida" e acho q vale bem para o livro e para a nossa vida. Nunca temos tempo e dinheiro suficientes, mas precisamos aproveitar da melhor forma. Pelo jeito é um livro bem reflexivo neh? Gostei.
    Abraços
    http://profissao-escritor.blogspot.com.br

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    1. Olá, Gih! Obrigado pela sua visita, sempre!
      Adorei essa frase que você compartilhou. É a pura verdade... Apesar de não valorizarmos muito o tempo, ele vale muito mais do que o dinheiro. É claro, não podemos viver sem nenhum dos dois. É preciso saber equilibrar. Tem gente que se mata de trabalhar a vida inteira e nunca tem dinheiro suficiente para ir atrás dos seus sonhos. Uma vida toda desperdiçada.
      Abraços

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  3. Adorei a resenha!
    É o tipo de livro que minha irmã gosta!
    Vou indicar para ela!

    Bjs
    www.garotadebotas.com

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    1. Obrigado, Jessi!
      Espero que sua irmã goste da recomendação de leitura!
      Volte sempre!

      Abraços

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  4. Você lê tão rápido e ainda assim consegue tirar essa profundidade de entendimento sobre a obra. Acho isso show. Preciso ler também. Vê se para de aumentar minha lista de pendências literárias. rs

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    1. Haha Obrigado, Paulo!
      Eu acho que fazer anotações e marcar os trechos favoritos ajuda bastante na hora de resenhar o livro. E quando a gente se identifica com uma obra, fica mais fácil escrever sobre ela.
      Pode ter certeza de que você vai gostar da leitura. É bem ácida!

      Abraços

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