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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Crônica: Carona de Natal e as Sombras da Metrópole

Véspera de Natal na capital paulista. O ônibus abre as portas e os passageiros entram. Comparado aos outros dias da semana, naquela data há assentos disponíveis para todos. Alívio. O motorista acelera pelas ruas praticamente desertas. Todo mundo tem pressa de chegar a algum lugar. Quem sabe se correr, o tempo voa também, pensa ele.
Moradores de Rua Metrópole
Fantasmas da metrópole. Foto: Domínio Público / Pixabay.

– Motorista, posso entrar? – grita a mulher.

Quando ela sobe a escada, não há uma pessoa que não a observe. Ela tem uma altura mediana, seus cabelos loiros e encaracolados têm um tom marrom. De repente, as palavras começam a jorrar de sua boca.

– Vocês que riram de mim, espero que tenham um péssimo natal e ano novo. Estão rindo porque eu não tenho dinheiro? Vocês acham que são ricos? Se fossem, não estariam nesta merda de ônibus. Um bando de pobre pagando de patricinha. – Ela olha para o motorista e vê que ele liberou a catraca para ela passar. – Obrigado, motorista! Que o seu fim de ano e de sua família seja incrível, não como o dessas pessoas.

Ela rebola pela catraca e se senta ao lado de um rapaz. Leva menos de um segundo para o cheiro se espalhar pelo ônibus. O odor de quem não toma banho há dias – a fragrância de suor, merda e desodorante vencido são tão fortes que os outros passageiros se controlam para não vomitar. O silêncio é quebrado por outra mulher que atende ao celular.

– Sim, é doloroso. Eu sinto a falta dele, mas depois do que ele fez... Chorei todos esses dias. Ele tinha outra.

– Diz para o seu marido que eu quero ser amante dele! – falou a mulher, soltando risadinhas. – Ser amante é mais gostoso.

– Vai ter churrasco? A gente pode fazer uma vaquinha. Se cada um ajudar, não sai tão caro.

– Ah, esses pobres querem comer o que não podem.

A outra mulher a ignora. Se não fosse pelo cheiro forte e pela fala, ela seria invisível. Só mais uma entre milhares de pessoas que não têm um emprego, que vivem na corda bamba da sanidade e loucura diariamente, que estão condenados a comer restos de comida e gastar as poucas moedas que ganham para sustentar seus vícios. A bebida e os entorpecentes tornam o chão macio como colchão. Eles estão nas praças, sob os viadutos, nas calçadas. Eles querem sobreviver na Selva de Pedra.

Quando a mulher do celular desce do ônibus, a louca continua gritando:

– Não se esquece de avisar ao seu marido. Eu quero ser amante dele. Sua corna!

O silêncio volta a reinar no ônibus. Passageiros que estavam perto dela trocam de lugar, o cheiro chega a fazer os olhos arderem e o nariz irritar, enquanto outros preferem ficar em pé, bem atrás, perto da porta. Embora alguns desejassem que ela fosse invisível, como um fantasma que assombra a cidade, seus sentidos não os enganam. É possível sentir seu toque rústico e sujo, seus pensamentos que escapam pela boca como trovões, sua nuvem tóxica que torna difícil o respirar.

– Porra. Bunda. Merda. Cacete. – Ela repete as palavras, como se fosse uma canção. Um disco furado que é impossível ignorar.

– Motorista, obrigado! – gritam dois homens que entram no ônibus. – Eu gostaria de pedir um minuto da atenção de vocês. Nós estamos vendendo estes kits para ajudar a cobrir os custos de nossa instituição. Nós não recebemos nenhuma ajuda do Governo nem de qualquer empresa privada. Vivemos num lar que nos deixa ficar longe das ruas e nos impede de continuar consumindo drogas e do álcool. Se vocês conhecem alguém com esses problemas, sabe que não é fácil...

– Eu conheço. Eu tenho problemas com álcool! – berra a mulher. O homem olha para ela por alguns segundos e continua o discurso.

– O dinheiro arrecadado com os kits nos ajudará a pagar as contas da instituição: energia, água, aluguel e alimentação, para que o serviço continue sendo feito. Eu quero deixar um trecho da bíblia para vocês... “O salário do pecado é a morte”.

O homem vai passando de banco em banco, entregando o kit: uma caneta, adesivos coloridos e uma mensagem religiosa.

– Já temos uma apoiadora. Que Deus te abençoe! – fala o homem, enquanto recolhia o dinheiro.
Outras pessoas também ajudam os dois rapazes. Quando ele passa pela mulher, ela que já está envolvida com o seu kit, logo dispara:

– Eu gostaria de ajudar, mas não tenho dinheiro. Sabe como é... Será que posso ficar com o kit?

O homem não responde. Ele está dividido entre pegar de volta o material, pensando no dinheiro perdido. Ela não se importa. Ela ganhou o kit. É o seu primeiro e único presente de Natal. Eles descem do ônibus e agradecem aos que compraram e ao motorista.

– Olha só o que eu ganhei. Meu presente. – A mulher balança o kit, cheia de alegria. – Para onde é que vai mesmo este ônibus? – Ela pergunta para a jovem que está sentada atrás dela.

– Para o Terminal.

– Não é para lá que eu queria ir... Como eu faço para chegar naquele lugar, perto daquele posto de gasolina, sabe?

– Você tinha que ter pegado o ônibus do outro lado da rua. É preciso voltar.

– Obrigada. – Ela sorria para a garota que logo fica muda. – Motorista, eu preciso descer! Feliz Natal! – Grita a loira.

O ônibus para em frente ao ponto e ela vai rebolando pelo corredor, até que as portas se abrem e ela desce as escadas. Ela grita em agradecimento ao motorista.

A garota que estava sentada atrás da loira mostra para o colega o que comprou.

– O que você vai fazer com isso? – pergunta ele.

– Não tenho ideia. Nem sei por que comprei... Três reais jogados fora.

Os outros passageiros que estavam quietos, como se estivessem aterrorizados por uma assombração, agora estão conversando. Ainda não é Natal, mas eles estão agradecidos. Logo estarão com suas famílias, jantando a ceia, longe dos perigos das ruas, dos milhares de sombras que são ignorados e apodrecem de fora para dentro até que não tenham como não notá-los, com suas peles cinzentas como o céu e odores dos becos sujos.

– Motorista, me dá uma carona? – diz o homem de sandálias e roupas rasgadas.

Quando o motorista para o ônibus mais uma vez, os passageiros trocam olhares rápidos e logo suas cabeças se voltam para frente. Os burburinhos se dissipam. A catraca gira, ele dá um sorriso sem metade dos dentes na boca e se senta. Os diálogos se tornam monólogos mentais. O motorista não se importa de dar caronas no Natal. E assim se passa mais um dia na metrópole.

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