Véspera de Natal na capital paulista. O ônibus abre as portas e os passageiros entram. Comparado aos outros dias da semana, naquela data há assentos disponíveis para todos. Alívio. O motorista acelera pelas ruas praticamente desertas. Todo mundo tem pressa de chegar a algum lugar. Quem sabe se correr, o tempo voa também, pensa ele.
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Fantasmas da metrópole. Foto: Domínio Público / Pixabay. |
– Motorista, posso entrar? – grita a mulher.
Quando ela sobe a escada, não há uma pessoa que não a observe. Ela tem uma altura mediana, seus cabelos loiros e encaracolados têm um tom marrom. De repente, as palavras começam a jorrar de sua boca.
– Vocês que riram de mim, espero que tenham um péssimo natal e ano novo. Estão rindo porque eu não tenho dinheiro? Vocês acham que são ricos? Se fossem, não estariam nesta merda de ônibus. Um bando de pobre pagando de patricinha. – Ela olha para o motorista e vê que ele liberou a catraca para ela passar. – Obrigado, motorista! Que o seu fim de ano e de sua família seja incrível, não como o dessas pessoas.
Ela rebola pela catraca e se senta ao lado de um rapaz. Leva menos de um segundo para o cheiro se espalhar pelo ônibus. O odor de quem não toma banho há dias – a fragrância de suor, merda e desodorante vencido são tão fortes que os outros passageiros se controlam para não vomitar. O silêncio é quebrado por outra mulher que atende ao celular.
– Sim, é doloroso. Eu sinto a falta dele, mas depois do que ele fez... Chorei todos esses dias. Ele tinha outra.
– Diz para o seu marido que eu quero ser amante dele! – falou a mulher, soltando risadinhas. – Ser amante é mais gostoso.
– Vai ter churrasco? A gente pode fazer uma vaquinha. Se cada um ajudar, não sai tão caro.
– Ah, esses pobres querem comer o que não podem.
A outra mulher a ignora. Se não fosse pelo cheiro forte e pela fala, ela seria invisível. Só mais uma entre milhares de pessoas que não têm um emprego, que vivem na corda bamba da sanidade e loucura diariamente, que estão condenados a comer restos de comida e gastar as poucas moedas que ganham para sustentar seus vícios. A bebida e os entorpecentes tornam o chão macio como colchão. Eles estão nas praças, sob os viadutos, nas calçadas. Eles querem sobreviver na Selva de Pedra.
Quando a mulher do celular desce do ônibus, a louca continua gritando:
– Não se esquece de avisar ao seu marido. Eu quero ser amante dele. Sua corna!
O silêncio volta a reinar no ônibus. Passageiros que estavam perto dela trocam de lugar, o cheiro chega a fazer os olhos arderem e o nariz irritar, enquanto outros preferem ficar em pé, bem atrás, perto da porta. Embora alguns desejassem que ela fosse invisível, como um fantasma que assombra a cidade, seus sentidos não os enganam. É possível sentir seu toque rústico e sujo, seus pensamentos que escapam pela boca como trovões, sua nuvem tóxica que torna difícil o respirar.
– Porra. Bunda. Merda. Cacete. – Ela repete as palavras, como se fosse uma canção. Um disco furado que é impossível ignorar.
– Motorista, obrigado! – gritam dois homens que entram no ônibus. – Eu gostaria de pedir um minuto da atenção de vocês. Nós estamos vendendo estes kits para ajudar a cobrir os custos de nossa instituição. Nós não recebemos nenhuma ajuda do Governo nem de qualquer empresa privada. Vivemos num lar que nos deixa ficar longe das ruas e nos impede de continuar consumindo drogas e do álcool. Se vocês conhecem alguém com esses problemas, sabe que não é fácil...
– Eu conheço. Eu tenho problemas com álcool! – berra a mulher. O homem olha para ela por alguns segundos e continua o discurso.
– O dinheiro arrecadado com os kits nos ajudará a pagar as contas da instituição: energia, água, aluguel e alimentação, para que o serviço continue sendo feito. Eu quero deixar um trecho da bíblia para vocês... “O salário do pecado é a morte”.
O homem vai passando de banco em banco, entregando o kit: uma caneta, adesivos coloridos e uma mensagem religiosa.
– Já temos uma apoiadora. Que Deus te abençoe! – fala o homem, enquanto recolhia o dinheiro.
Outras pessoas também ajudam os dois rapazes. Quando ele passa pela mulher, ela que já está envolvida com o seu kit, logo dispara:
– Eu gostaria de ajudar, mas não tenho dinheiro. Sabe como é... Será que posso ficar com o kit?
O homem não responde. Ele está dividido entre pegar de volta o material, pensando no dinheiro perdido. Ela não se importa. Ela ganhou o kit. É o seu primeiro e único presente de Natal. Eles descem do ônibus e agradecem aos que compraram e ao motorista.
– Olha só o que eu ganhei. Meu presente. – A mulher balança o kit, cheia de alegria. – Para onde é que vai mesmo este ônibus? – Ela pergunta para a jovem que está sentada atrás dela.
– Para o Terminal.
– Não é para lá que eu queria ir... Como eu faço para chegar naquele lugar, perto daquele posto de gasolina, sabe?
– Você tinha que ter pegado o ônibus do outro lado da rua. É preciso voltar.
– Obrigada. – Ela sorria para a garota que logo fica muda. – Motorista, eu preciso descer! Feliz Natal! – Grita a loira.
O ônibus para em frente ao ponto e ela vai rebolando pelo corredor, até que as portas se abrem e ela desce as escadas. Ela grita em agradecimento ao motorista.
A garota que estava sentada atrás da loira mostra para o colega o que comprou.
– O que você vai fazer com isso? – pergunta ele.
– Não tenho ideia. Nem sei por que comprei... Três reais jogados fora.
Os outros passageiros que estavam quietos, como se estivessem aterrorizados por uma assombração, agora estão conversando. Ainda não é Natal, mas eles estão agradecidos. Logo estarão com suas famílias, jantando a ceia, longe dos perigos das ruas, dos milhares de sombras que são ignorados e apodrecem de fora para dentro até que não tenham como não notá-los, com suas peles cinzentas como o céu e odores dos becos sujos.
– Motorista, me dá uma carona? – diz o homem de sandálias e roupas rasgadas.
Quando o motorista para o ônibus mais uma vez, os passageiros trocam olhares rápidos e logo suas cabeças se voltam para frente. Os burburinhos se dissipam. A catraca gira, ele dá um sorriso sem metade dos dentes na boca e se senta. Os diálogos se tornam monólogos mentais. O motorista não se importa de dar caronas no Natal. E assim se passa mais um dia na metrópole.
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