Dezembro chegou e com ele veio a vontade de escrever novos capítulos de sua história. Estava disposto a deixar outubro e novembro para trás, tentar se focar no momento presente e se deixar perder nas novas linhas que se formavam. Era verdade que deixar os capítulos anteriores para trás não era uma tarefa fácil, mas precisava seguir em frente, sempre se movimentando em direção aos seus sonhos. Tentava não criar expectativas sobre que tipos de histórias iria escrever, o papel em branco que antes o paralisava, agora servia como um convite para deixar novas palavras surgirem. Escrevia pra quê, afinal de contas? Para se lembrar? Para esquecer? Para colocar para fora? Para simplesmente praticar o ato de escrever? Não havia uma resposta certa ou errada. Escrevia porque era sua paixão fazer isso e enquanto continuasse respirando, pretendia continuar escrevendo. Escrever capítulos novos poderia ser uma atividade interessante. Diferente do que muitos pensam, nem todos escritores deixam tudo plan...
O livro Pensão Margaridas é uma autobiografia escrita por João Vasconcellos, um ex-dependente químico que foi internado em uma clínica, no Rio de Janeiro, na qual foi diagnosticado incorretamente como esquizofrênico e viu sua disposição para viver diminuir dia após dia, devido aos remédios que era obrigado a tomar e a maneira que era tratado pelos funcionários da instituição. A obra, de 170 páginas, foi publicada pela Editora Ponto Vital, em 2015.
O poeta Ivan Junqueira escreveu o prefácio de Pensão Margaridas, no qual ele declara que independente do gênero literário do livro (romance ou novela), discute-se um assunto importante: a desumanização dos pacientes, seja dentro de clínicas psiquiátricas ou de dependentes químicos. “O que se percebe claramente em Pensão Margaridas é, guardadas as devidas distâncias, uma espécie de “recordações da casa dos mortos”, ou seja, as lancinantes lembranças do arbitrário “laboratório” experimental onde se desenvolvem os processos clínicos, medicamentosos e praxisterápicos destinados a mitigar o transtorno mental dos pacientes”, afirmou Ivan Juqueira. O próprio escritor teve uma irmã internada em outra clínica e pode presenciar também a prepotência por parte da equipe médica.
A história de João Vasconcellos revela os tempos difíceis em que passou na Pensão Margaridas. Logo na primeira parte do livro, o autor relata como era realizado o tratamento com drogas pesadas para melhorar os sintomas de sua suposta esquizofrenia paranoide. Além de os medicamentos que o deixavam em estado de apatia, outro ponto marcante da narrativa é o jeito que enfermeiros, médicos e demais profissionais da saúde se comportavam diante dos pacientes. Sem os familiares terem acesso ao que acontece no cotidiano na clínica, muitas coisas aconteciam e eram abafadas ou distorcidas, principalmente quando não havia consenso entre os membros da equipe.
“Em pouco tempo, mergulhei num redemoinho cada vez mais fundo, cuja intensidade e rotação foram aumentando... Não tinha qualquer noção do que iria acontecer comigo... Minha sensação era a da proximidade da morte... Parecia que todos conspiravam”
João Vasconcellos ficou mais de dois anos em tratamento com psiquiatras e psicólogos que pareciam não acreditar na possibilidade de sua melhora tão cedo. Em um ambiente isolado, com outras pessoas sem expectativas de alta, João viu sua saúde mental se deteriorar e a aflição aumentar, sem ter quem ajudá-lo a se livrar daquele inferno.
O autor nos faz pensar nos abusos de autoridade que aconteciam dentro de instituições para dependentes químicos e pessoas com transtornos mentais, em que há incerteza por parte dos pacientes sobre os reais resultados dos tratamentos e até que ponto os interesses financeiros são maiores do que o bem-estar de quem está internado lá. Aliás, muitos dos diálogos com os funcionários da clínica revelam uma ignorância sobre o assunto e a necessidade de se buscar não só um olhar mais humano, mas mais coerente, menos absurdo.
“Era madrugada. Fui bruscamente despertado ao sentir garras em minha nunca (e não estava sonhando ou mesmo lendo um conto de Edgar Poe...). Parecia algo satânico. Seria um íncubo, um súcubo? Fiquei paralisado. Quando consegui me virar, vi que um interno havia se sentado sobre a minha cama. Ele me olhava com fixidez...”
O que é mais intrigante nas relações entre os personagens de Pensão Margaridas é a submissão dos profissionais às donas da clínica, como a Doutora Magda – que, aliás, parecia tão desequilibrada quanto seus pacientes, especialmente quando acontece algo com um dos seus pacientes e os olhos da mídia se voltam para a instituição. Dentro do ambiente, também assusta ver que pessoas que deveriam ter mais cuidado com outras vidas acabaram se transformando em verdadeiros carrascos e manipuladores. Uma das memórias marcantes é a de quando um paciente morre e a médica comenta sobre como a mente dele foi responsável por fazer o remédio piorá-lo.
Ao longo do livro, o leitor acompanha as melhoras e pioras de João Vasconcellos. Além de as dificuldades de dialogar com os profissionais da clínica, ele ainda precisa lidou com o seu vício por cocaína – motivo pelo qual ele acabou entrando, graças às alterações de comportamento e surtos psicóticos. Após a alta de João Vasconcellos, ele acaba caindo em seu ciclo de perdição, mas o que o afunda é também o que o ajuda a investigar a raiz dos seus problemas e o levando a conhecer outros especialistas da mente.
“A minha boca estava seca e minha voz pastosa. Eu estava novamente sedado com neurolépticos... Havia voltado a ser uma não pessoa, sem conseguir pronunciar palavras e frases até o final [...] nada mais tinha sentido. Era uma depressão medonha; os outros pacientes me fitavam com tristeza, com desesperança...”.
Entre a agonia e a curiosidade, João Vasconcellos nos guia por suas memórias dos dias de tormenta. Se por um lado, o autor acredita ter sido diagnosticado de forma errada e até mesmo encontrou apoio de um psiquiatra que o ajudou a parar de tomar as medicações pesadas que o deixava sem energia para retomar o controle de sua vida, por outro, eu diria que seria praticamente impossível não enlouquecer diante de tantas situações desagradáveis. Pensão Margaridas é um livro baseado em fatos reais que explora o aspecto sombrio por trás das instituições de reabilitação que, muitas vezes, acabam mais excluindo do que ajudando os pacientes a se reintegrarem à sociedade.
Sobre o autor – João de Vasconcellos Dias nasceu no Rio de Janeiro em 1960. Ficou órfão de seu amado pai aos seis anos. Em 1973, após a morte do avô materno, com quem moravam, mudou-se com a mãe para a cidade serrana de Petrópolis. Adolescente rebelde, apaixonado pelas artes, teve contato com drogas. Conviveu também, na época, com textos esotéricos e cabalísticos, dentro os quais os de Eliphas Levi, e alguns atribuídos a Hermes Trismegistus. Tornou-se cunhado e amigo do poeta Ivan Junqueira, de quem sofreu influência (cujo texto final se constitui no prefácio ao presente volume). Retornou ao Rio de Janeiro em 1979, onde começou a cursar a faculdade de História, tendo cogitado transferir-se para o curso de Psicologia, quando ocorreu o hiato causado pelo episódio da ‘Pensão Margaridas’. João exerce hoje as atividades de comerciante e empresário, com loja na Zona Sul, no bairro do Flamengo.
Que resenha bem escrita. Completa e inspiradora. Despertou minha curiosidade sobre o livro, Ben. Abraço.:-)
ResponderExcluirOi, Claudia!
ExcluirFeliz em ter despertado o seu interesse pelo livro com a resenha. Tenho certeza de que o autor vai ficar feliz.
Abraço