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Destaques

Sem talvez

Não havia talvez quando se tratava de pôr a própria saúde mental em primeiro lugar, especialmente quando o outro a estava negligenciando. Não havia talvez para continuar sustentando um relacionamento que não ia para frente, no qual o outro se negava a se responsabilizar e se colocava constantemente no papel de vítima. Não havia talvez quando você havia se transformado em uma espécie de terapeuta que tinha que ficar ouvindo reclamações e problemas constantes, se sentindo completamente drenado após cada interação. Já não havia espaço para o talvez. Talvez as coisas seriam diferentes se o outro tivesse o mesmo cuidado com a saúde mental que você tem. Talvez a fase ruim iria passar um dia. Talvez a pessoa ia parar de se pôr como vítima e começar a se responsabilizar. Eram muitos talvez que não tinha mais paciência para esperar. Então, não, já havia aguentado mais do que o suficiente. Não era responsável por lidar com os problemas do outro. Não era responsável por tentar levar leveza diante...

Passarinho: Livro proporciona reflexão sobre o luto e as crenças familiares

O livro Passarinho (Bird), da escritora Crystal Chan, é o tipo de leitura que nos faz refletir sobre como o luto, as crenças familiares e a depressão podem influenciar negativamente a vida de uma criança. A obra foi publicada no Brasil pela Editora Intrínseca, em 2014, com tradução de Thaís Paiva.


O romance tem uma aura bem triste. Além de mostrar os dramas de infância da personagem principal, Joia, Passarinho também fala sobre outro tema bastante importante, especialmente nos dias atuais: as famílias multiculturais (a família do pai é da Jamaica, enquanto a mãe é Mexicana e a história se passa em Iowa). Há um preconceito não só externo, mas uma dinâmica delicada dentro da própria casa em relação às diferentes crenças e perspectivas sobre acontecimentos ruins.

“Não disse nada no caminho para casa, nem no restante da noite, nem no dia seguinte. Nem uma palavra. Na verdade, eu não queria falar nunca mais, pelo resto de minha vida. Quando algo que você ama é tomado de você, as palavras são inúteis. De que adiantam as palavras se elas são vazias, impotentes ou falsas? Por que não ficar em silêncio até o último minuto da eternidade?” – Crystal Chan, Passarinho

A morte de John (Passarinho) deixo um vazio bem grande em sua casa. Chega a ser agoniante ver como Joia é invisibilizada diante dos pais e isso nos faz refletir como uma família desestruturada pode afetar o desenvolvimento de uma pessoa. Joia é uma garota solitária que lida com o silêncio do avô e que tem a sensação de que nunca será amada como o irmão, já que os pais também parecem estar submersos em seus próprios problemas.

Conforme a trama vai desenrolando, mais conhecemos sobre a história da família de Joia. Com doze anos de idade, a garota ainda vive como se fizesse pouco tempo da morte do seu irmão, como se ela fosse uma sombra. Essa negação dos próprios desejos da garota leva ela a entrar mais em contato com as pedras e desperta o seu interesse pela geologia, fazendo com que ela encontre sua própria forma de se relacionar e refletir sobre a vida, como percebendo que algumas rochas originalmente de outros lugares se adaptaram com o passar do tempo.

“As cigarras cantavam alto. Era lindo e assustador ao mesmo tempo. Como algo tão pequeno fazia tanto barulho? E alguém tão grande como vovô não fazia som algum? […] A felicidade é como uma criança, percebi, futucando o tronco perto de minhas pernas. Ou a alimenta, ou ela morre” – Crystal Chan, Passarinho

Uma amizade inesperada, mentiras, segredos e brigas. Com uma pegada bem realista sobre os dramas familiares, como a dificuldade de se encaixar em outra cidade, os problemas financeiros e como as emoções não trabalhadas podem se tornar venenosas, os fantasmas e as maldições são trabalhados tanto no sentido literal como através de metáforas. Joia luta para ser ela mesma e se sentir valorizada, mesmo quando o seu comportamento passa a ser visto como influência de espíritos malignos.

Um ponto curioso sobre a cidade em que se passa a história é que atualmente ela é considerada uma cidade fantasma – a informação foi divulgada no site oficial da autora. No livro, a narradora nos retrata uma cidade pequena, mas essa informação de que Caledonia é mais um desses lugares abandonados e esquecidos, dá uma dimensão maior da estagnação emocional da família e da existência de espíritos na região.

“Naquele momento, meu coração ficou dormente. Não senti absolutamente nada. Se alguém tivesse cavado em meu peito com uma pá enferrujada, arrancado meu coração e batido nele como se fosse um camundongo, acho que eu nem teria percebido” – Crystal Chan, Passarinho

Crystal Chan escreveu um livro que fala sobre a importância da superação. A imagem do pássaro pode tanto significar a liberdade e a vontade de levantar voo, como a dificuldade de criar raízes e de encontrar um ambiente estável. O romance não traz muitas reviravoltas e até mesmo proporciona mal-estar ao nos levar para um universo de desesperança e a possibilidade de que a tragédia possa se tornar uma constante na vida da personagem principal. Mesmo o clímax não é tão catártico, concluindo a leitura com aquele gostinho de que na vida real as coisas nem sempre acontecem como gostaríamos e de que as coisas são como elas são.

Sobre a autora – Crystal Chan é filha de pai chinês e mãe de ascendência polonesa. Cresceu em meio a plantações de milho no Wisconsin e vem tentando encontrar seu lugar no mundo desde então. Com base em pesquisas e na própria experiência de ter sido educada em uma família multicultural, já publicou artigos em veículos como The Guardian, além de ministrar palestras e workshops e mediar grupos de discussão pelos Estados Unidos. Em Chicago, onde vive atualmente, é possível encontrá-la passeando de bicicleta pela cidade e batendo papo com sua tartaruga de estimação. Passarinho é sua estreia literária. Quem quiser saber mais curiosidades sobre Passarinho pode conferir a página no site da escritora: http://crystalchanwrites.com/bird-fun-facts/

*Ben Oliveira é escritor, blogueiro e jornalista por formação. É autor do livro de terror Escrita Maldita, publicado na Amazon e do livro de fantasia jovem Os Bruxos de São Cipriano: O Círculo (Vol.1), disponível no Wattpad.

Comentários

  1. quando eu lera esse livro me encontrei em outro mundo, me vi flutuando no universo de Joia, me peguei sentindo saudades de Jhon, me agonizando com a quietude de vovô e imaginado como sera sua voz, mas, acima de tudo, sentia a tranquilidade que o penhasco passara. Passarinho, um livro que me fez se sentir intima da protagonista, que me derramou lagrimas e colocou sorrisos bobos em minha face. Indicaria o livro principalmente para pessoas que estão passando por uma fase difícil, relacionada a perca de um ente querido.

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    Respostas
    1. Oi, Rayani! Obrigado por compartilhar sua experiência de leitura por aqui. Cada leitor tem percepções diferentes e acredito que essa é a magia dos livros. É um livro bem sensível e delicado, mas que também nos faz perceber o peso das crenças e como elas podem ser limitantes (quando não faz parte da nossa realidade).
      Abraços

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