Durante esta semana comprei dois livros do Milan Kundera: A Arte do Romance e
A Insustentável Leveza do Ser. Mesmo com outras leituras pendentes, não resisti e tive que devorar o primeiro.
A Arte do Romance é o primeiro
livro de não ficção do autor, escrito originalmente em francês, publicado no Brasil em 2009, pela
Companhia das Letras através do selo
Companhia de Bolso, com tradução de
Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca.
Talvez tenha começado pela ordem errada, talvez não. Precisava de uma pausa da ficção. Minha mente agradeceu! Gosto de livros de ensaios, entrevistas e anotações. Milan Kundera reuniu textos sua prática como romancista e apesar de ser o primeiro livro dele que eu leio – sim, li antes de A Insustentável Leveza do Ser –, foi bem proveitoso.
O livro está dividido em sete partes: A herança depreciada de Cervantes, Diálogo sobre a arte do romance, Anotações inspiradas por Os Sonâmbulos, Diálogo sobre a arte da composição, Em algum lugar do passado, Sessenta e três palavras e Discurso de Jerusalém: o romance e a Europa.
Apesar desta divisão em partes, todos elas acabam se convergindo nos romances de Milan Kundera, escritores que o influenciaram e marcaram forte presença na narrativa romanesca da Europa, como Cervantes, Proust, Hermann Broch e Kafka.
Sobre o livro, Milan Kundera afirma na nota do autor:
“A obra de cada romancista traz uma visão implícita da história do romance, uma ideia do que é o romance: é essa ideia de romance, inerente a meus romances, que tentei expor”.
Milan Kundera aborda o desenvolvimento do romance, descrevendo algumas de suas características, como o gênero literário tem acompanhado os homens desde o início dos tempos modernos. O autor descreve a importância que Hermann Broch dava à descoberta do conhecimento em um romance, sendo esta sua única moral e afirma o papel da Europa na história, considerando-o uma obra europeia.
O escritor descreve como os romances que costumavam ser mais longos, principalmente por causa das viagens dos personagens pelo mundo, se tornaram mais curtos – para Milan Kundera, o leitor precisa ser capaz de se lembrar do começo, por isto a importância da condensação do texto e de ir direto ao âmago das coisas. Ele também afirma que o romance tem um espírito de complexidade (não tão fáceis como parecem) e de continuidade (diálogo com as obras anteriores).
“O romancista não é nem historiador nem profeta: ele é explorador da existência”.
Para quem gosta de entrevistas com escritores, como eu, o livro traz um diálogo entre Christian Salmon e Milan Kundera, publicado pela revista nova-iorquina, Paris Review, dividido em duas partes: uma sobre a arte do romance e a outra sobre a arte da composição. Mesmo para quem ainda não leu os romances do Milan Kundera, pela naturalidade da entrevista, direcionamento das perguntas e aprofundamento das respostas, é possível compreender sobre o que eles estão falando – claro que quando ler esses livros, vou reler A Arte do Romance.
Kundera explica sua visão sobre os romances, descrevendo o papel que a ação tinha na narrativa até os que dão mais importância para a vida interior. Ele também fala sobre seus próprios romances, a tentativa explorar a vida humana e de apreender a essência da problemática existencial.
“O romance não examina a realidade, mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz”.
Outro ponto interessante da entrevista é quando Milan Kundera revela a influência da música na composição de seus romances. Ele compara o trabalho do compositor com o do escritor, dizendo que não basta encher linguiça. Kundera compara uma parte da narrativa ao movimento e os capítulos aos compassos – de durações variadas. Segundo o romancista, os movimentos do texto, assim como acontece com a música, influenciam no nosso estado emocional.
Na quinta parte do livro, o autor fala sobre o escritor Franz Kafka, caracterizando os textos kafkianos. Um belo ensaio sobre a produção literária de Kafka e como ela influenciou outros autores, através de sua própria lógica interna.
Já durante a sexta parte, Milan Kundera compartilhou seu dicionário pessoal, pedido por um amigo diretor de uma revista, quando o escritor tcheco comentou a dificuldade que estava enfrentando com as traduções dos seus livros para outros idiomas, fazendo com que ele mesmo tivesse que revisar as obras. Então, Kundera divulga 63 palavras-chave de suas narrativas.
O último capítulo do livro traz um discurso de um prêmio que ele recebeu em Jerusalém. Durante esta parte, ele separa o conceito de autor e romancista, citando Flaubert, quando diz que o romancista precisa desaparecer por trás de sua obra e renunciar ao papel de homem público.
Recomendo A Arte do Romance não só para quem quer aprender mais sobre o gênero literário, mas para quem é apaixonado pelo processo de criação literária. É sempre um prazer aprender mais sobre a literatura, principalmente quando o texto não é engessado pelo excesso de teorias nem pelas técnicas sobre escrita de ficção. O livro me lembrou
A Consciência das Palavras, do escritor Elias Canetti, também publicado pela Companhia das Letras.
Sobre o autor – Milan Kundera nasceu em Brno, na República Tcheca, em 1929, e emigrou para a França em 1975, onde vive como cidadão francês. Romancista e pensador de renome internacional, é autor, entre outras obras, de A insustentável leveza do ser, A brincadeira, Risíveis amores, A identidade, A ignorância, A cortina e O livro do riso e do esquecimento, publicadas no Brasil pela Companhia das Letras.