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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz – Danilo Otoch

O livro Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz foi escrito por Danilo Otoch, publicado em 2015, no Rio de Janeiro, pela Cultura em Letras Edições. O romance se passa nos dias atuais, mas tem uma pegada de história, drama e realismo, cujo tema principal é uma tentativa de reconstruir algumas questões mal resolvidas da ditadura militar brasileira.

A história é narrada em primeira pessoa por Marcos, um dos sobreviventes que tentou lutar contra o período de repressão militar no Brasil ao lado de seus ‘companheiros’. Logo no primeiro capítulo do livro, o leitor acompanha o reencontro de Marcos com João, um evento que influencia o destino dos dois homens e possibilita um resgate de suas memórias.

“A opção pela guerrilha me deixou com cicatrizes físicas e emocionais. Sofri muito. Mas tem gente que fico com sequelas eternas”.

Com a proposta de se vingar pelas torturas físicas e psicológicas que eles sofreram e de fazer justiça com suas próprias mãos, ao tentar descobrir onde foram parar os corpos de seus companheiros de luta assassinados na época do regime militar, João convida Marcos para fazer parte deste plano maluco.

A partir deste plano de vingança que entra em cena o terceiro personagem, Dr. Asmodeu, um dos responsáveis pela morte, violência e desaparecimento de centenas de guerrilheiros ou ‘esquerdistas’.

A trama da narrativa que apresenta esta mistura entre ficção e realidade mais do que nos deixar instigado para saber qual será o desfecho da história, proporciona uma boa dose de reflexão. Particularmente, não é um tema que desperte tanto o meu interesse, pois foi um período obscuro de nossa história, a qual me faz perceber que qualquer tipo de extremismo nunca é positivo.  Porém, este é um dos diferenciais da obra de Danilo Otoch, mostrar os dois lados dos mesmos acontecimentos. De um jeito ou de outro, diante deste embate de ideologias, o resultado só poderia ser tragédia.

“Esquecer é diferente de não lembrar. Esquecer é obliterar. É apagar da mente. Eu esqueci. Esqueci do melhor amigo que já tive na vida. Do homem que uma vez me salvou a vida, e que foi assassinado e ocultado. Pensei em seus pais e irmãos, e pensei na vida que poderia ter levado se não tivesse a vida ceifada tão prematuramente na colheita mais amarga da história do Brasil”.

Em um período em que os brasileiros estão insatisfeitos com o atual Governo, o livro Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz possibilita a rememoração de uma série de fatos, visto que o povo do Brasil é conhecido pela sua ‘memória curta’. Vendo as manifestações nas ruas, nas quais as pessoas pedem pela intervenção militar, não é preciso muitos argumentos para comprovar como muitas delas não têm ideia do que estão pedindo. Diante desta confusão e obscurecimento dos pensamentos, a Literatura no exercício de imaginação para o leitor – mais do que um mero entretenimento – pode ajudar a iluminar, rever ideias e desconstruir conceitos.

Voltando à narrativa, Danilo Otoch junta esses três personagens de personalidades bem diferentes que estiveram presentes num mesmo momento da história brasileira e agora se reencontram. Embora os anos tenham passado, as cicatrizes no corpo, na mente e na alma permanecem queimando. Do descontrole de João que beira à psicose – desconexão com a realidade, de um Marcos machucado que tentou seguir em frente e de um Asmodeu que continua inflexível, o leitor vê esta dança de cadeiras dos personagens e como toa boa literatura realista consegue cutucar a ferida até fazê-la sangrar.

“Os conceitos que regem os atos humanos são tão elásticos, que a verdade inabalável de um homem pode ser facilmente a mentira inacreditável de outro”. 

Preso num aparelho, Asmodeu é levado a narrar o seu envolvimento com a ditadura. Além de relatar o óbvio que João e Marcos já tinham conhecimento, com sua frieza, Asmodeu os mostra um universo que eles não tinham ideia. O quanto das guerrilhas e da ditadura eles realmente sabiam? Será que eles podiam realmente confiar em seus companheiros? As palavras envenenadas do ex-militar não só infectam e destroem muitas das memórias dos vingadores, como também servem como peças de um quebra-cabeça.

O comportamento de João causa estranhamento em Marcos. O rapaz age como se tivesse parado no tempo, usando seus termos de guerrilheiros a todo instante e com sua personalidade moldada aos seus objetivos. Por outro lado, o protagonista Marcos mesmo tentando manter seu equilíbrio e deixar as coisas para trás, é transformado pelas revelações de Asmodeu. Destes conflitos internos e do desenrolar das ações, o leitor se sente tão angustiado quanto o triângulo para o que os espera no final da narrativa.

Da tentativa de reparação, da certeza de que as pessoas não mudam e os ciclos continuam se repetindo, o desfecho de Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz traz um clímax bem realista. Creio que a intensidade da catarse depende de uma série de fatores que possibilitam a maior identificação com os personagens e com os contextos. Para quem nasceu anos após a ditadura militar e não viveu na pele, como eu, imaginar o não vivenciado não é tão doloroso e libertador quanto poderia ser para quem se enxergou nas linhas e entrelinhas da narrativa. Independente do nível de afinidade emocional com a trama, é impossível ler Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz e ficar indiferente diante deste período histórico e sombrio do Brasil, com a certeza de que quem pede pela intervenção militar não imagina que a maré pode voltar contra si mesmo a qualquer momento. Ainda que a Literatura não tenha compromisso com a realidade, é bom quando ela sacode o leitor e o enche de tapas na cara, fazendo-o pensar e repensar suas posturas diante da vida e da sociedade.

Sobre o autor – Danilo Otoch nasceu no Rio de Janeiro, em 1968, e atualmente reside na cidade de Jundiaí (SP). Formado em História, exerce a função policial desde 1997. Foi finalista do Prêmio SESC de Literatura de 2010, na categoria Contos, com seu primeiro livro, Mundo Cão. Secretamente, Danilo também escreve poesias e quando não está lendo ou escrevendo, dedica seu tempo integralmente à sua família e à outra paixão, as artes marciais.

Sobre a editora – A Cultura em Letras Edições surgiu a partir da necessidade de renovar a literatura nacional, apostando e incentivando novos autores a desenvolverem projetos editoriais em diversos gêneros. Occello Oliver é o criador e editor. Leia a entrevista com Occello publicada aqui no blog!

O que acharam do livro? Espero que tenham gostado da resenha! Peço desculpas desde já pela demora – em relação ao tempo que eu levava antes para ler e resenhar –, estou atolado de leituras da graduação, mas prometi a mim mesmo e a vocês, leitores do blog, que eu vou fazer o possível para não deixar o meu espaço morrer. Para que os Vivos e os Mortos Descansem em Paz pode ser comprado no site da Cultura em Letras Edições!

Comentários

  1. Desde que você postou sobre o lançamento desse livro que aguardo a resenha. O momento do país é o mais oportuno para esse tipo de leitura, escarafunchar esse passado negro do Brasil e dar uma sacudida nessas pessoas que pedem a intervenção militar. Só de pensar nas histórias que Asmodeu tem para contar, já fico arrepiado. Uma pena que no nosso país lê-se tão pouco, pois só a leitura pode dar uma ideia do que era e voltaria a ser ( Deus me livre) a Ditadura), sem superficialidade e nem opiniões tendenciosas. A propósito, que bom vê-lo ativo no blog novamente. Abraço, Ben, muito sucesso.

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    1. Oi, Ronaldo! Agora que meu notebook voltou da manutenção, é provável que eu volte a postar com mais frequência por aqui. Como sempre, sou imensamente grato pela sua visita e comentário.
      Concordo contigo. Creio que quem pede pela ditadura militar no Brasil não tem ideia do que está fazendo... Ou se tem, imagina que está do lado que não pode ser prejudicado. Pura ilusão. Toda forma de extremismo é negativa. Também acho triste ver as religiões manipulando cada vez mais fieis. Muitos brasileiros estão lendo mais (livros religiosos), mas literatura que é bom... Quase não estão lendo.
      Abraços!

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  2. Ben, quando eu vi aquelas pessoas pedindo intervenção militar no país eu fiquei abismada, eu pensei "acho que elas não fazem a menor ideia do que estão pedindo!", penso que essas pessoas deveriam ler livros como esse e muitos outros para perceberem o horror que foi essa época.
    Só a educação e o autoconhecimento libertam... é no que acredito, pelo menos. Abraços. =)

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    1. Oi, Michele!
      Concordo contigo. Parece que essas pessoas têm preguiça de aprofundarem seus conhecimentos e pensam num nível superficial, onde à primeira vista pode parecer a 'solução dos problemas'. Acontece que todo extremismo tem seus efeitos colaterais. Sou contra tanto os guerrilheiros quanto ao militarismo. Independente de qual lado 'ganhasse', o resultado ia ser um caos.
      Abraços

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