As estrelas continuavam brilhando no céu, mas não conseguia alcançá-las. Havia encontrado uma estrela tão brilhante, mas quando tentou aproximar a visão, percebeu que ela já estava ao lado de outra estrela. Entre a surpresa e o choque, logo tentou se esquecer do que havia visto: era a única coisa que restava a fazer. A empolgação inicial de encontrar estrelas dera espaço a uma certa preguiça misturada à letargia. Sabia que elas estavam em algum lugar, bastava o tempo certo para que elas aparecessem, mas já não se sentia tão confiante em sua busca e pensara que ter ficado preso o suficiente em outros formatos estava atrapalhando seus êxitos. Queria uma estrela que servisse como uma musa, algo praticamente impossível de encontrar, mas que sabia que estava ali em algum lugar esperando por ele. Talvez as expectativas fossem altas e irreais, mas depois de se queimar e gelar pela realidade era tudo o que precisava. Estrelas, novas, brilhantes, estrelas que ainda não haviam tocado seu coração...
Entrevista: João Vasconcellos, autor do livro autobiográfico Pensão Margaridas
Após passar por períodos de internação por causa da combinação explosiva entre álcool e cocaína e de ter sido diagnosticado como esquizofrênico – diagnóstico que alguns anos depois, ao consultar outro psiquiatra, ele descobriu que era falho – João de Vasconcellos Dias conseguiu deixar de lado as medicações pesadas que diminuíam sua disposição para viver e voltar a ter uma rotina produtiva.
João Vasconcellos no lançamento de Pensão Margaridas, na Livraria Travessa, em Botafogo (RJ). Foto: Miguel de Sá / Cedida pela assessoria de imprensa.
As experiências durante os anos internados foram contadas em seu livro Pensão Margaridas, lançado no final de 2015, no Rio de Janeiro, pela Editora Ponto Vital. João Vasconcellos participou da entrevista para o Blog do Ben Oliveira e contou como foi a experiência de escrever o seu livro e se abrir para os leitores sobre os dias dentro de uma instituição em que se sentia afundando, sem perspectivas de melhora. O autor acredita que o seu livro vai ajudar outras pessoas a não passarem pelas mesmas situações que ele.
Confira a entrevista com o autor João Vasconcellos:
Ben Oliveira: Escrever um livro autobiográfico pode ser libertador e/ou atormentador, especialmente com um tema tão delicado como o seu. Como foi a experiência de escrever Pensão Margaridas e reviver todas aquelas memórias dos dias de internação? João Vasconcellos: A experiência não poderia ser melhor, já que o livro vem recebendo elogios e reconhecimento de vários setores da sociedade... Não tem como ser atormentador publicar uma obra que tem como principal propósito auxiliar outras pessoas. No entanto, confesso que já estava cansado de trabalhar no tema da internação, no qual fiquei mergulhado ao longo de vários anos...
Ben Oliveira: Pensão Margaridas é um livro que abre os olhos dos leitores para problemas que nem sempre são comentados abertamente na mídia, como os falsos diagnósticos, excesso de medicamentação e desumanização de pacientes internados. Quando e por qual razão decidiu publicar a obra? João Vasconcellos: Assim que descobri o grave erro médico, eu me vi diante de duas alternativas: a primeira seria um processo judicial, que provavelmente iria ser longo, dispendioso, e não deveria dar em nada, já que existe corporativismo. A minha segunda alternativa foi resgatar a história através da literatura. Foi o que eu fiz.
"Eu vivi como um prisioneiro por quase mil dias. Além de estar preso fisicamente, as medicações engessavam as minhas emoções, a minha consciência" – João Vasconcellos
Ben Oliveira: Em seu site, você descreve Pensão Margaridas como um relato ficcional-memorialístico, fazendo o leitor questionar até que ponto as coisas realmente aconteceram. Qual é a linha entre a ficção e a realidade presente no livro? João Vasconcellos: A história é absolutamente real. Usei o termo “ficcional” de forma indevida, e pode ver que foi retirado.
Ben Oliveira: Algumas experiências são tão marcantes em nossas vidas, como a dependência e a internação foram para você, que precisamos transformá-las em busca da catarse. De que forma a escrita te ajudou a lidar com os fantasmas do passado? João Vasconcellos: O livro se constituiu numa súmula do que passei antes, durante e depois da internação. Para mim não foi perturbador. Perturbador teria sido não escrever ou não publicar o livro, o que passei a ver como um dever, uma obrigação. Quando o fiz já estava distanciado psicologicamente do episódio, e livre das drogas.
Ben Oliveira: Você acredita que se o assunto fosse mais discutido em sociedade sua experiência de internação seria diferente? João Vasconcellos: As pessoas que lerem e discutirem o meu livro estarão mais conscientes dos riscos dos diagnósticos falsos e oportunistas.
Ben Oliveira: Enquanto você esteve internado, um rapaz submetido ao mesmo tratamento que você morreu e o assunto atraiu a atenção da mídia. Ao notar que muitos dos pacientes não melhoravam e não tinham previsão de alta, você temeu que o mesmo acontecesse a você? João Vasconcellos: É claro que sim! Quando comecei a escutar os relatos dos pacientes mais antigos, logo percebi que tinha entrado numa “fria”, e que teria grandes dificuldades para escapar daquela arapuca.
Ben Oliveira: Na primeira parte da obra, você relata o gosto pela leitura ao longo de sua vida, desde histórias em quadrinho e revistas até livros. Para você, qual é a importância da leitura na formação do ser humano? João Vasconcellos: A leitura é fundamental! Um dos propósitos do(s) meu(s) livro(s) é estimular o interesse pela leitura por parte, inclusive, daqueles que perderam esse hábito. E confesso que já tenho alcançado este propósito, uma vez que a narrativa tem fisgado muitos leitores.
Ben Oliveira: Todos nós temos medos. Você relatou uma rápida melhora após descobrir que o diagnóstico estava errado e outro psiquiatra recomendou a suspensão dos remédios. Atualmente, como você se sente em relação ao álcool e à cocaína? João Vasconcellos: O uso de álcool e cocaína foi uma fase de minha vida, de minha juventude, e fez parte da irresponsabilidade comum entre muitos jovens, que parecem acreditar que nada de ruim vai lhes acontecer. Muitos jovens se comportam como se fossem indestrutíveis, como se nunca fossem morrer.
Acho que pessoas que têm problemas com drogas não devem se iludir no sentido de achar que não têm cura, ou de que são doentes. É muito diferente o fato de estar doente, de estar intoxicado, com o de efetivamente ser doente, coisa que jamais fui. Responsabilizo os médicos, particularmente a médica responsável pela Pensão Margaridas, pelo diagnóstico falso e oportunista, que tinha como único propósito impressionar e explorar a minha família, que se viu obrigada, inclusive, a vender um apartamento, para custear as despesas com a internação.
Ben Oliveira: Além dos fortes medicamentos que sugavam sua disposição de viver, como você acredita que o isolamento do convívio com outras pessoas e a sensação de não ser escutado afetaram sua vida naqueles anos? João Vasconcellos: Posso responder isso com poucas palavras: foi algo terrível. Eu vivi como um prisioneiro por quase mil dias. Além de estar preso fisicamente, as medicações engessavam as minhas emoções, a minha consciência. Já dei provas de que sou produtivo. Imagine uma pessoa como eu viver prisioneira por tanto tempo...
Ben Oliveira: Não ter uma rotina, perspectiva de melhora ou ser escutado. Apesar de não ter um transtorno mental, a experiência deve ter sido enlouquecedora. Como foi sentir na pele o preconceito que muitas pessoas com doenças mentais sofrem no Brasil? Você temeu que pudesse enlouquecer de verdade? João Vasconcellos: Eu achava que tinha me tornado esquizofrênico. Eles me haviam convencido disso. A Doutora* (que no livro aparece como Doutora Magda) dizia que eu tinha “cronificado”. Como eu vivia fortemente sedado, não tinha possibilidades de manifestar melhora alguma. Quando perdi os receituários e voltei, após cinco anos, ao meu estado normal, que percebi logo que eu era uma pessoa normal, já que voltei a pensar. Com as bênçãos de Deus suponho que não fiquei com qualquer sequela.
Ben Oliveira: Se pudesse fazer algo diferente durante aquele tempo, o que faria? João Vasconcellos: Eu não poderia ter feito nada diferente. Estava preso, estava numa espécie de cárcere privado. A minha rotina era a de prisioneiro. Se fugisse, iria fugir para onde naquele estado?
Ben Oliveira: Como você se sentiu quando soube que a clínica foi fechada? João Vasconcellos: Quando recebi essa informação, fiquei preocupado com os pacientes que ainda permaneciam ali.
Ben Oliveira: Seu livro foi lançado em novembro de 2015 na Livraria da Travessa, no Rio de Janeiro. Como foi a sensação de publicar o livro e saber que seria lido por outras pessoas? João Vasconcellos: Uma história como a da Pensão Margaridas não poderia deixar de ser publicada. Aliás, eu tinha muito medo de não conseguir realizar o meu projeto. Os principais propósitos foram denunciar a máfia que se esconde em jalecos brancos, bem como ajudar outras pessoas a serem resgatadas dessa patifaria.
Ben Oliveira: Há uma forte relação entre artistas, escritores e seus excessos com drogas e álcool ou omissão de tratamento em relação aos sintomas de transtornos mentais e tendências suicidas. Passando por tudo o que você passou e levando em conta que nem sempre é possível se tornar produtivo quando não estamos bem, você acredita que é importante uma vida equilibrada para quem produz arte? João Vasconcellos: Uma vida equilibrada é fundamental para qualquer pessoa, artista ou não. Pena que muitos somente levam a saúde a sério depois de a terem perdido...
Ben Oliveira: O livro deve concorrer ao Prêmio Jabuti este ano. Quais são as expectativas? João Vasconcellos: Sabemos que o Jabuti é o principal prêmio da nossa literatura, e qualquer artista, qualquer escritor, quer ter um justo reconhecimento pelo seu trabalho. A resposta que sair da banca examinadora deverá ser justa. Vou aguardar sem ansiedade.
Trecho do livro Pensão Margaridas.
Ben Oliveira: Originalmente, Pensão Margaridas era para ser uma das novelas presentes em seu projeto de livro Sete Histórias. Existe a intenção de continuar escrevendo e divulgando suas histórias? João Vasconcellos: Existe sim. Continuo escrevendo. Assim que meu livro passou a ter reconhecimento, assumi o papel de escritor perante a sociedade. Foi um rito de passagem.
Aliás, o meu próximo livro vai se chamar ‘Sete ritos de passagem’. Através dele esgotarei a matriz biográfica. O meu terceiro livro será ‘2104’, e a narrativa vai girar em torno dos conflitos entre duas supostas sociedades neste ano (ficção).
Ben Oliveira: O que os leitores podem esperar do próximo livro? Existe alguma relação temática com Pensão Margaridas? João Vasconcellos: Em ‘Sete ritos de passagem’ narro algumas histórias que vivi dos treze aos quarenta anos. Abordo certos temas de forma original; os leitores terão algumas surpresas. Numa das histórias, narro a minha amizade e convivência, quando eu era adolescente, com o poeta Ivan Junqueira.
Serão também mergulhos interiores, vivências no campo espiritual, algumas experiências com drogas.
Ben Oliveira: Para finalizar, quais recomendações você deixaria para a família de pessoas internadas em instituições para dependentes químicos e transtornos mentais? João Vasconcellos: Acho que para pacientes internados, sobretudo em tratamentos longos, são fundamentais avaliações periódicas com médicos confiáveis e que não tenham vínculo com a instituição, para não haver corporativismo.
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Acho que você entende porque eu adorei essa entrevista. Eu tinha conhecimento que esse tipo de coisa acontecia porque eu mesma recebi vários diagnósticos diferentes e errados por médicos que apenas queriam me vender tratamentos caros ou ir pelo caminho mais fácil para eles...agora imagina a pessoa não ter transtorno nenhum?!... Tenha certeza que lerei esse livro. Ótima entrevista, como sempre.
Oi, Michele! Espero que você goste do livro. Eu gostei bastante, pois sei que existem muitos lugares e doutores assim pelo mundo. Por isso é tão importante que os familiares investiguem bem, antes de escolherem uma instituição. Abraço
Acho que você entende porque eu adorei essa entrevista. Eu tinha conhecimento que esse tipo de coisa acontecia porque eu mesma recebi vários diagnósticos diferentes e errados por médicos que apenas queriam me vender tratamentos caros ou ir pelo caminho mais fácil para eles...agora imagina a pessoa não ter transtorno nenhum?!... Tenha certeza que lerei esse livro. Ótima entrevista, como sempre.
ResponderExcluirOi, Michele! Espero que você goste do livro. Eu gostei bastante, pois sei que existem muitos lugares e doutores assim pelo mundo. Por isso é tão importante que os familiares investiguem bem, antes de escolherem uma instituição.
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