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Destaques

Sem talvez

Não havia talvez quando se tratava de pôr a própria saúde mental em primeiro lugar, especialmente quando o outro a estava negligenciando. Não havia talvez para continuar sustentando um relacionamento que não ia para frente, no qual o outro se negava a se responsabilizar e se colocava constantemente no papel de vítima. Não havia talvez quando você havia se transformado em uma espécie de terapeuta que tinha que ficar ouvindo reclamações e problemas constantes, se sentindo completamente drenado após cada interação. Já não havia espaço para o talvez. Talvez as coisas seriam diferentes se o outro tivesse o mesmo cuidado com a saúde mental que você tem. Talvez a fase ruim iria passar um dia. Talvez a pessoa ia parar de se pôr como vítima e começar a se responsabilizar. Eram muitos talvez que não tinha mais paciência para esperar. Então, não, já havia aguentado mais do que o suficiente. Não era responsável por lidar com os problemas do outro. Não era responsável por tentar levar leveza diante...

Mortes Silenciosas

Ela se sentou em frente da casa. Seu olhar parecia perdido, como se ela estivesse em uma viagem para dentro de si mesma. Muitas perguntas, poucas respostas. Era aquela a vida que ela levaria? Quando foi que as coisas fugiram do seu controle?

O marido saíra de casa e ela o observava se afastando. Os dois já estavam velhos. Ele caminhava até o mercado. Um trajeto que antigamente levaria apenas cinco minutos, mas agora ele levava quase uma hora para ir e voltar. Para onde tinha ido toda a vitalidade dele? Ela não sabia responder. Talvez toda a fumaça que ele havia sugado ao longo da vida tivera tornado seus pulmões mais cinzentos e vagarosos, como uma velha e empoeirada chaminé.


O cachorro latia sem parar, pedindo atenção. Ela continuava lá, tentando se desconectar do mundo ao seu redor e ao mesmo tempo, tentando encontrar o caminho de volta. Se perder era fácil, uma vez que você saia andando pelos caminhos da mente e se cansava de percorrer os mesmos lugares, você procurava o escuro. Você poderia achar que era vazio, mas criaturas da noite habitavam lá... Criaturas que sussurravam ideias malucas em seu ouvido e a faziam se sentir culpada por tudo o que deixava para trás.

Olhei para ela e por um instante achei que ela fosse me reconhecer, mas não. Não havia nada ali. Naquele instante, sua alma estava vagando por outros universos. Me perguntei quanto tempo levaria para ela voltar? Será que ela não tinha medo de se perder e nunca mais achar o seu lugar no mundo?

As perguntas... Mesmo sem escutar as palavras saindo da sua boca, ela me pedira para calar a boca e parar de pensar tanto. Pare de tentar analisar o que não sabe. Como você acha que eu sobrevivi tanto assim? Então, olhei para ela e pensei em seu avô que fora lutar na guerra; na avó, que vivera cercada de tantas crianças e ainda assim dava um jeito de trabalhar e trabalhar como se não houvesse amanhã. Era tudo um jogo de silêncio, você não entende? O que acontece quando não há mais o que fazer para ocupar a mente?

Ela não sabia a resposta. Talvez não houvesse um único jeito de se encontrar. O filho logo chegaria, trazendo toda a bagunça e desequilíbrio. Era ela a culpada? Por que se sentia responsável por todas as vezes em que ele se envolveu com as pessoas erradas, que roubou ou do dia em que ela fora resgatá-lo na prisão. Somos responsáveis até pelas coisas que não temos controle.

Ela queria ter o controle de novo. Seus olhos ficaram lá, primeiro, achei que estivessem vazios, até me dar conta que eram como uma velha televisão fora do ar. Eu podia ouvir os ruídos que ela fazia em sua mente. Era doloroso demais. Tocavam partes do seu inconsciente que ela não tinha capacidade de fazer parar, que ela gostaria que fossem inalcançáveis.

Vivera todos aqueles anos pra quê? Por um marido que já não a amava há anos, mas não deixaria um centavo para ela. Para o filho mimado que se achava um pequeno deus, no entanto lhe lembrava mais os demônios que ela tanto temia e rezava para que se afastassem. Por uma casa que já construíra e quebrara tantas vezes.

O marido voltava caminhando. Ela escutara o som do filho estacionando o carro. Ela olha para os lados e percebe que eu estava a observando. Ela não diz nada, mas sei que seus olhos me pedem o silêncio. Alguns segredos são demais. Alguns segredos são levados para o túmulo com a gente. Ela balança a cabeça e aperta a unha contra o dedo, como se soubesse que deveria estar presente.

As perguntas não foram embora. Elas nunca iam. Não havia tempo para perder. Ela abriu o seu sorriso cansado e abraçou ao filho. Depois resmungou algo para o marido, jogou ração para o cachorro, abriu a porta e fechou. E eu? Eu fiquei ali, como um cúmplice de um crime que nada poderia fazer. Ela se deixara morrer tantas e tantas vezes e agora já não sabia como se sentir viva.

Ela tinha chave da prisão, mas aceitara o seu destino há tantos anos. O tempo levara todo o resto, já não havia para onde ir. Talvez da próxima vez, escuto sua voz em minha cabeça, traga as flores e espalhe a terra.

***

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