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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: Orgias Literárias da Tribo – Editora Orgástica

Orgias Literárias da Tribo. Não deixe o nome te assustar se for puritano. A coletânea de textos LGBT foi organizada pelo escritor Fabricio Viana e publicada pela Editora Orgástica, em 2014. Não se tratam de textos eróticos, como é possível pensar num primeiro momento. O livro traz textos sobre os cotidianos, desejos e sentimentos de 10 autores gays, lésbicas e trans de São Paulo. Crônicas, poemas, contos, conselhos, desabafos, experiências engraçadas e desencontros.

O livro tem 144 páginas e dimensões de 14 x 21 cm. Se eu pudesse definir o livro de outra forma que não fosse o título Orgias Literárias da Tribo, que aliás o define muito bem, eu o definiria com a palavra Diversidade. A coletânea aborda um pouco sobre o universo LGBT, porém dentro desse mundo colorido cada um tem suas diferentes visões sobre a vida. Da reunião dessas diferentes ideias, experiências, sentimentos, o leitor encontra o prazer.

Nesta orgia, o leitor encontra histórias para todos os gostos, desde os mais românticos e sensíveis até os mais hilários e ácidos. Resenhar coletâneas não é tão fácil quanto parece. Quando nos atemos ao romance de um autor, é possível sentir sua essência do começo ao final da história, enquanto nas coletâneas lidamos com a pluralidade. Portanto, pretendo abordar um pouco sobre os textos de cada um dos autores, de acordo com a ordem de publicação no livro. Fica a critério do leitor começar por onde desejar, do conhecido ao desconhecido, do romantismo ao trágico, do prazer à dor.

Começando pelo prefácio escrito pelo Fabrício Viana, em que o escritor define uma orgia literária e convida o leitor para não só observá-la, mas participar e interagir com os diferentes autores, sem preconceitos e de mente aberta. Como o organizador da coletânea ressalta, o Orgias Literárias da Tribo possibilita o contato não só com textos sobre o universo que você já conhece e vive, porém provar novos sabores – é claro, sempre vamos gostar mais de uns do que de outros, no entanto o importante aqui é experimentar o que te dá prazer e sair da sua zona de conforto.

Autores do Orgias Literárias da Tribo durante o lançamento do livro em São Paulo.
Foto: Divulgação.
Marina Rodrigues é a primeira a abrir o seu coração no Orgias. Que surpresa maravilhosa, devo admitir. Mulher trans, Marina é destemida, delicada e obstinada. Os textos dela me arrancaram sorrisos pela sua determinação em se posicionar diante do mundo, com seus desejos e visões, sem dúvidas uma inspiração para os leitores, independente do gênero, identidade ou orientação sexual. Marina é Marina, e encanta ao compartilhar suas experiências, algo nem sempre fácil, mas essencial em uma orgia, ficar pelada diante dos outros participantes, inclusive do leitor. Trecho favorito dos textos de Marina Rodrigues:

“... A partir daquele momento eu não seria mais uma personagem de mim mesma, e sim Marina, eu mesma, com meus questionamentos e minhas aspirações”. 

Caio Gomez participou com o conto “Se as estrelas falassem...”. Como definir a história em poucas palavras sem tirar o suspense do leitor? Linda, trágica, romântica. Me arrepiei todo durante a leitura. A narrativa em primeira pessoa faz o leitor se colocar no papel do protagonista e sentir as mesmas alegrias e tristezas e no final refletir sobre as próprias atitudes. Meu trecho favorito do conto do Caio Gomez foi:

“Suba nessa pedra e jogue-o ao vento, para que caia no mar e as águas o levem para bem longe. Vou fazer o mesmo... Assim, nosso amor ficará perdido na imensidão do mar, onde ninguém poderá jamais encontrá-lo”. 

Sou suspeito para falar sobre o texto da Karina Dias. Afinal, durante esses últimos dias li os seus livros As Rosas e a Revolução e Diário de uma Garota Atrevida e me encantei pelo seu estilo. Apesar de escrever histórias de ficção voltadas para lésbicas, o seu modo de escrever ultrapassa barreiras. Seu conto no Orgias Literárias da Tribo se chama “Júlia e Sara” e narra o encontro de duas mulheres, com um toque de romantismo, feminilidade e final feliz. Karina arranca suspiros. Meu trecho favorito do conto de Karina Dias foi:

“Quando penso na voz dela, quando sonho com ela, quando desejo estar com ela, me sinto mulher, mas quando estamos ao telefone me sinto uma criança diante do algodão doce, feliz, imaginando que tenho nas mãos uma nuvem. Consigo até flutuar, quase toco o céu, este céu que é feito de estrelas de açúcar de cristal”.

Oliver Lebruter aparece sob os holofotes, com seu estilo crítico e bem humorado. Não dá para ler os textos do Oliver sem sentir vontade de rir. No entanto, o autor mostra que a vida não é só feita de risos e também exige lucidez. Oliver escreve sem hipocrisias, sem medo de dar pintas. Ri sem parar com suas pílulas. Outro destaque dos textos do Oliver foi a sua diagramação. Para ler alguns textos é preciso girar o livro. “Para fugir de gente louca, seja mais louca”. Meu trecho favorito do Oliver Lebruter foi:

“Talvez eu sonhe demais, talvez eu seja muito egocêntrico, talvez eu chore menos do que deveria, talvez eu sorri mais do que devo, talvez eu erre, peque, julgue, brigue, abrigue, me dê, me venda, me julgue mais do que posso. Talvez”. 

Laris Neal escreveu o conto “Loucas (in)decentes” que relata as loucuras de duas mulheres. Laris também arranca risadas dos leitores com o seu estilo hilário, ao mesmo tempo em que serve doses de romantismo. O tipo de história que você termina de ler e sente vontade de ir a um bom bar de rock tomar bons drinks. Meu trecho favorito do conto da Laris Neal foi:

“Encostei-a no azulejo branco e frio da parede, beijando-lhe o pescoço, embriagando-me com o cheiro do seu perfume. Pela primeira vez senti o gosto adocicado daqueles lábios macios, que me beijavam com urgência”.

Meu conto favorito do Orgias Literárias da Tribo foi o do Evertton Henrique. A história dividida em três capítulos narra a vida de um homem narcisista e carnal, guiado pelos seus instintos e desejos egoístas, sem se importar com quem se machuca ao cruzar o seu caminho. Mais do que uma boa dose de entretenimento, Evertton proporciona doses de reflexão sobre a hipervalorização da imagem. Meu trecho favorito do conto do Evertton Henrique foi:

“Aquelas belas palavras, saindo da boca de um homem belo, fariam qualquer um acreditar. Sempre queremos acreditar em príncipes encantados, e, quando um sapo finge ser príncipe, nos encantamos. Principalmente se esse sapo tiver cara de príncipe”.

Paula Guedes mistura autobiografia, ficção e conselhos em seus textos. O primeiro texto “As quatro estações” é lindo. “As caixas passadas” também é bacana e contrasta do romantismo do primeiro por abordar o fim. Ambos textos abordam os ciclos dos relacionamentos, a felicidade dos momentos de paixão e o desconforto da perda, do desapego. Além dos textos citados, Paula também dá conselhos sobre iniciantes no universo LGBT e critica o incômodo causado por homens. Meu trecho favorito dos textos da Paula Guedes foi:

“Eu a pedi em casamento em um verão. E dentro de mim nunca mais houve outra estação”.

Heller de Paula escreveu um conto que faz o leitor mergulhar na mente de um homem religioso e hipócrita, um combate entre desejos e preconceitos. Uma narrativa envolvente, com realismo e acidez. Heller mostra como a repressão de uns, o grito de socorro de outros. Meu trecho favorito do conto do Heller de Paula foi:

“– Você também é viado, Paulo! Vive nesse conto de fadas mentiroso, mas no fundo você quer mesmo é uma piroca, você gosta de homem...”.

Meggie M. aborda a solidão de três mulheres lésbicas, em diferentes estilos de vida, em seu texto Linha Vermelha. “A solidão ocupa o espaço que se dá para ela”. Meggie narra como elas preenchem o vazio e, muitas vezes, se contentam com o olhar, com o toque, buscando maneiras de se distrair quando estão se sentindo só. Meu trecho favorito do texto de Meggie M. foi:

“– Ninfeta tem gosto de leite. Mas gosto de ferver e misturar um pouco, só para sentir depois o gosto de café bem passado”.

Raphael Pagotto traz um texto sobre sua experiência com a cura gay, chamado “Feliciano um dia me representou”, no qual o autor conta como foi defensor desta terapia e agora luta contra. Raphael Pagotto também compartilha alguns poemas. O meu favorito foi o “Verlo”. Confira o trecho favorito do poema de Raphael Pagotto:

“Dia de recolher os pedaços que ficaram pelo chão
Caminhei como vidro, ainda que trincado,
por muito tempo.
Agora sou um caco...”.  

Para finalizar essa orgia, tem um texto meu, Ben Oliveira, chamado O Universo Literário Colorido. Fui convidado pelo escritor e organizador da coletânea, Fabricio Viana, para falar sobre a importância do surgimento de novos autores que escrevem sobre a temática LGBT e incentivar a leitura, para que sonhos continuem sendo realizados. Trecho do meu texto:

“Nosso caminho de tijolos não é amarelo, mas temos uma estrada cheia de arco-íris e personagens fascinantes pela frente”.

Recomendo a leitura não só para LGBT (Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais), mas também para heterossexuais que desejem abrir a mente e desvendar um pouco do nosso universo colorido. Temos desejos, sonhos, vontades, vícios, virtudes, luz, trevas, como qualquer pessoa. Dizem que o pote de ouro está atrás do arco-íris. Como todo boa leitura, Orgias Literárias da Tribo fornece conhecimento e catarse, através de uma viagem prazerosa. Cabe a você, depois de fechar o livro, decidir qual destino deseja visitar mais vezes. Fica aqui o meu incentivo para que os autores estreantes continuem escrevendo e para que os escritores veteranos prossigam nesta jornada, colorindo e compartilhando suas magias de contar histórias com os leitores.

Sobre o organizador da coletânea – Fabrício Viana (confira a entrevista com o autor publicada aqui no blog) é formado em Psicologia, Pós-graduado em Comunicação e Marketing, estuda e aborda a sexualidade humana. Autor dos livros O Armário, Ursos Perversos e organizador da coletânea Orgias Literárias da Tribo.

Sobre a Editora Orgástica – criada com o objetivo de promover o prazer literário com temas ligados à sexualidade humana, desde a educação sexual de nossos filhos - e que acreditamos ser algo primordial para um futuro saudável e livre de neuroses – até textos e coletâneas eróticas capazes de arrepiar todo o nosso corpo: mas sempre de forma séria, respeitosa, ousada e natural, como a própria sexualidade deveria ser.

Orgias Literárias da Tribo pode ser encontrado no site oficial do livro ou no site do escritor Fabrício Viana.

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