Para onde vão todas coisas que não dissemos? Essa é uma pergunta que muitas pessoas se fazem. Algumas ficam presas dentro de nós. Outras conseguimos elaborar em um espaço seguro, como a terapia. Mas ignorar as coisas, muitas vezes pode ser pior. Fingir que as emoções não existem ou que as coisas não aconteceram não faz elas desaparecerem. Quando um relacionamento chega ao fim, pouco importa quem se afastou de quem primeiro. Mas há quem se prende na ideia de que se afastou antes – em uma tentativa de controlar a narrativa, como se isso importasse. O fim significa que algo não estava funcionando e foi se desgastando ao longo do tempo. Nenhum fim acontece por mero acaso. Às vezes, quando somos levados ao limite, existem relações que não têm salvação – todos limites já foram cruzados e não há razão para impor limites, somente aceitar que o ciclo chegou ao fim. Isto não significa que você guarde algum rancor ou deseje mal para a pessoa, significa que você decidiu por sua saúde mental em pri...
Bem-te-vi, da escritora Marli Porto, é um livro infantojuvenil publicado em 2014, pela Editora Orgástica. Com 88 páginas de história, mais recomendações de leitura relacionadas à sexualidade, a obra narra a história de Daniel, um adolescente que se descobre diferente dos outros meninos do colégio e acaba se apaixonando por Matheus.
O livro aborda um assunto polêmico, mas necessário de se comentar, a descoberta da homossexualidade no período turbulento da adolescência. A sensação que eu tive ao ler Bem-te-vi foi parecida com: “Como não existiam livros assim na minha época do colégio? Teria me poupado muitos sofrimentos e dores de cabeça.”. Imagine as inúmeras pressões internas e externas suportadas pelos adolescentes e multiplique por dez se o rapaz ou a garota começa a perceber que sente atração por pessoas do mesmo sexo.
Marli Porto faz um retrato fiel das emoções daquele período da vida. Daniel é chamado de diferente, é visto como diferente, sente-se diferente. Que gay, independente do período da vida, nunca se sentiu assim? Aliás, se eu pudesse definir minha própria existência em uma palavra seria “diferente”. Logo, o leitor homossexual adulto entra em contato com o seu passado ou de seus amigos no livro e o leitor heterossexual mergulha num lugar desconhecido, onde ele, muitas vezes, é responsável pelo bullying homofóbico.
Apesar de no Brasil não existirem muitos livros infantis que abordem a homossexualidade, Marli Porto escreve com a sensibilidade de quem sabe que a obra vem para acrescentar na vida dos jovens leitores, pais e educadores. A paixão é vista através da ótica da pureza, sensação marcante neste período da vida. Um amor sem malícias. Uma atração entre almas, de sutis contatos entre os personagens, para não aumentar a confusão nas mentes dos jovens – pelo contrário, acredito que a proposta é lançar luz e dizer: “Está tudo bem ser diferente. Você não é anormal e não precisa sofrer”.
Levando em conta que muitos adolescentes gays se suicidam por não aguentarem as pressões, acredito que Bem-Te-Vi veio em boa hora. Às vezes, tudo o que esses jovens precisam saber é que tudo vai ficar bem, independente de suas orientações sexuais. O livro aborda os estereótipos do adolescente masculino de duas formas: através da ótica do protagonista e através do personagem por quem Daniel se apaixona. Daniel não gosta de jogar futebol e sofre pressão de todos os lados, dos colegas, da família, dos professores. Além da pressão por conseguir uma namoradinha. Por outro lado, o rapaz por quem ele se apaixona se encaixa no padrão dos colegas e não sofre preconceito.
Um dos meus trechos favoritos do livro foi:
“Não importa o que somos. A verdade é que, no final, o que queremos é ser aceitos e amados. Então, que cada um possa lutar pelo direito de ser o que é”.
Enfim, não vou me prolongar no texto falando sobre a história do livro para quem não tire a surpresa do leitor. Apesar de não ser nenhum vidente, algo me diz que pessoas mais conservadoras terão receio ao ler o livro, aliás, muitas delas que deveriam na verdade receber a mensagem da obra, pois propositalmente ou não, muitos jovens sofrem de depressão pela falta de aceitação dos outros e dificuldade em se posicionarem diante do mundo. O bullying homofóbico acontece não somente através das agressões físicas, que muitas vezes levam à morte, mas das palavras que repetidas tantas vezes para a vítima, acaba internalizando informações distorcidas. É um ciclo que precisa ser entendido para poder ser quebrado.
Lindo marcador de página do livro Bem-Te-Vi.
Bem-te-vi tem um final feliz. O que é importante ao leitor, para que perceba que também pode se sentir bem, independente de ser chamado de diferente pelos outros. No entanto, nem todas as histórias terminam assim – principalmente, as do mundo real e cruel em que vivemos.
Quando se trata de bullying, a adolescência é um dos piores períodos da vida, pois o jovem agressor e a vítima são produtos do meio em que vivem. “E o que eu tenho a ver com isso?”, você me pergunta. A vítima de hoje pode ser o agressor de amanhã. Aliás, mesmo não tendo sido abordado no livro, sabe-se que a homofobia não surge só da reprodução de discursos ouvidos dentro da própria família, do território escolar e da sociedade em geral. Muitos ataques e crimes homofóbicos acontecem devido à negação da própria homossexualidade, como explica o escritor Fabrício Viana, em seu livro O Armário. Neste caso, o “machão” agride o outro porque se enxerga nele e não quer aceitar que é igual, é como lutar com o próprio reflexo.
A ilustração de capa de Bem-Te-Vi foi feita por Carmen Thiago e acredito que represente bem a essência do livro – um jovem que queria ser livre como o pássaro, voar sem medo, ser feliz. As ilustrações ao longo das páginas foram desenhadas por Hokin Bear, um atrativo a mais aos jovens leitores, que podem imaginar melhor os personagens.
Em uma sociedade em que os jovens descobrem a própria sexualidade cada vez mais cedo, Bem-te-vi pode auxiliar no processo de entendimento e aceitação de si mesmo e do próximo. O livro tem apoio da Coordenação de Política para a Diversidade Sexual, Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo e do Governo do Estado de São Paulo. Independente da orientação sexual, a leitura de Bem-te-vi deve ser incentivada para ajudar na luta contra o preconceito e desenvolvimento de tolerância à diversidade humana. Acredito que muitos professores devem ler a obra, bem como pais e jovens. A homossexualidade ainda é tratada como um tabu e tristemente como uma doença por algumas pessoas. Se o adolescente homossexual não se sente confortável dentro da própria casa, é tratada mal dentro do colégio, não tem orientação dos professores, como é que ele pode se desenvolver saudável?
Se em muitos livros os personagens gays ainda são excluídos, como se não existissem no mundo real e no ficcional, ou tratados como personagens secundários, sem muito destaque, atualmente, temos a oportunidade de desfrutar da boa literatura, em que independente do protagonista ser gay ou não, obtemos uma boa dose de entretenimento, reflexão e conhecimento. Afinal, o papel da literatura é o de transformar o leitor, colocá-lo na pele dos personagens, enfrentar os mesmos conflitos, para no final, assim como o protagonista, se obtenha experiências, novas visões sobre a vida e derrota dos nossos medos. Aliás, não obrigatoriamente todos esses fatores estão disponíveis em todos os gêneros literários, mas uma coisa é certa: da primeira até a última página do livro passamos por uma transformação.
Parabéns à escritora Marli Porto por essa contribuição ao Brasil e à Editora Orgástica (editor Fabrício Viana) por se envolver em um projeto tão bacana, que pode ajudar a melhorar e salvar várias vidas, através de mais uma forma de combater o preconceito, o bullying e a violência e a sensação de que ser gay é errado – como citado no texto acima, que pelo excesso de pressão pode levar muitos jovens a cometerem suicídio.