Pular para o conteúdo principal

Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: A Arte do Romance – Milan Kundera

Durante esta semana comprei dois livros do Milan Kundera: A Arte do Romance e A Insustentável Leveza do Ser. Mesmo com outras leituras pendentes, não resisti e tive que devorar o primeiro. A Arte do Romance é o primeiro livro de não ficção do autor, escrito originalmente em francês, publicado no Brasil em 2009, pela Companhia das Letras através do selo Companhia de Bolso, com tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca.


Talvez tenha começado pela ordem errada, talvez não. Precisava de uma pausa da ficção. Minha mente agradeceu! Gosto de livros de ensaios, entrevistas e anotações. Milan Kundera reuniu textos sua prática como romancista e apesar de ser o primeiro livro dele que eu leio – sim, li antes de A Insustentável Leveza do Ser –, foi bem proveitoso.

O livro está dividido em sete partes: A herança depreciada de Cervantes, Diálogo sobre a arte do romance, Anotações inspiradas por Os Sonâmbulos, Diálogo sobre a arte da composição, Em algum lugar do passado, Sessenta e três palavras e Discurso de Jerusalém: o romance e a Europa.
Apesar desta divisão em partes, todos elas acabam se convergindo nos romances de Milan Kundera, escritores que o influenciaram e marcaram forte presença na narrativa romanesca da Europa, como Cervantes, Proust, Hermann Broch e Kafka.

Sobre o livro, Milan Kundera afirma na nota do autor:


“A obra de cada romancista traz uma visão implícita da história do romance, uma ideia do que é o romance: é essa ideia de romance, inerente a meus romances, que tentei expor”.

Milan Kundera aborda o desenvolvimento do romance, descrevendo algumas de suas características, como o gênero literário tem acompanhado os homens desde o início dos tempos modernos. O autor descreve a importância que Hermann Broch dava à descoberta do conhecimento em um romance, sendo esta sua única moral e afirma o papel da Europa na história, considerando-o uma obra europeia.

O escritor descreve como os romances que costumavam ser mais longos, principalmente por causa das viagens dos personagens pelo mundo, se tornaram mais curtos – para Milan Kundera, o leitor precisa ser capaz de se lembrar do começo, por isto a importância da condensação do texto e de ir direto ao âmago das coisas. Ele também afirma que o romance tem um espírito de complexidade (não tão fáceis como parecem) e de continuidade (diálogo com as obras anteriores).

“O romancista não é nem historiador nem profeta: ele é explorador da existência”.

Para quem gosta de entrevistas com escritores, como eu, o livro traz um diálogo entre Christian Salmon e Milan Kundera, publicado pela revista nova-iorquina, Paris Review, dividido em duas partes: uma sobre a arte do romance e a outra sobre a arte da composição. Mesmo para quem ainda não leu os romances do Milan Kundera, pela naturalidade da entrevista, direcionamento das perguntas e aprofundamento das respostas, é possível compreender sobre o que eles estão falando – claro que quando ler esses livros, vou reler A Arte do Romance.

Kundera explica sua visão sobre os romances, descrevendo o papel que a ação tinha na narrativa até os que dão mais importância para a vida interior. Ele também fala sobre seus próprios romances, a tentativa explorar a vida humana e de apreender a essência da problemática existencial.

“O romance não examina a realidade, mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-se, tudo aquilo de que é capaz”.

Outro ponto interessante da entrevista é quando Milan Kundera revela a influência da música na composição de seus romances. Ele compara o trabalho do compositor com o do escritor, dizendo que não basta encher linguiça. Kundera compara uma parte da narrativa ao movimento e os capítulos aos compassos – de durações variadas. Segundo o romancista, os movimentos do texto, assim como acontece com a música, influenciam no nosso estado emocional.

Na quinta parte do livro, o autor fala sobre o escritor Franz Kafka, caracterizando os textos kafkianos. Um belo ensaio sobre a produção literária de Kafka e como ela influenciou outros autores, através de sua própria lógica interna.

Já durante a sexta parte, Milan Kundera compartilhou seu dicionário pessoal, pedido por um amigo diretor de uma revista, quando o escritor tcheco comentou a dificuldade que estava enfrentando com as traduções dos seus livros para outros idiomas, fazendo com que ele mesmo tivesse que revisar as obras. Então, Kundera divulga 63 palavras-chave de suas narrativas.

O último capítulo do livro traz um discurso de um prêmio que ele recebeu em Jerusalém. Durante esta parte, ele separa o conceito de autor e romancista, citando Flaubert, quando diz que o romancista precisa desaparecer por trás de sua obra e renunciar ao papel de homem público.

Recomendo A Arte do Romance não só para quem quer aprender mais sobre o gênero literário, mas para quem é apaixonado pelo processo de criação literária. É sempre um prazer aprender mais sobre a literatura, principalmente quando o texto não é engessado pelo excesso de teorias nem pelas técnicas sobre escrita de ficção. O livro me lembrou A Consciência das Palavras, do escritor Elias Canetti, também publicado pela Companhia das Letras.


Sobre o autor – Milan Kundera nasceu em Brno, na República Tcheca, em 1929, e emigrou para a França em 1975, onde vive como cidadão francês. Romancista e pensador de renome internacional, é autor, entre outras obras, de A insustentável leveza do ser, A brincadeira, Risíveis amores, A identidade, A ignorância, A cortina e O livro do riso e do esquecimento, publicadas no Brasil pela Companhia das Letras.

Comentários

  1. Amei loucamente a dica. Amei também descobrir que você é um jornalista. Amo essa profissão.
    Parabéns pelo blog e essa matéria.
    Paty (leiturasplus.blogspot.com)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Patricia!
      Fico muito feliz que tenha gostado da dica. Sou suspeito, já que adoro livros sobre escrita, principalmente os de ensaio. Gosto muito desta troca de experiência entre autor-leitor, sem ficar muito teórico ou técnico.
      Obrigado! Sou formado em Jornalismo, mas minha atuação é mais solo por aqui mesmo.
      Abraços

      Excluir
  2. Li "A Insustentável Leveza Do Ser" há muitos anos e o livro em deixou uma forte impressão. Tanto que me repreendo por não ter voltado ao Milan. Parece muito interessante seu conceito sobre romance. É sempre muito compensador ler as experiências e os pontos de vista de escitores, desde os iniciantes até os consagrados.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Ronaldo! Também gosto muito.
      Já estou louco para ler A insustentável leveza do ser e os outros do autor. É bacana ver que o autor está se popularizando. Tenho visto resenhas sobre os livros dele até em blogs adolescentes. Gosto muito dos livros publicados pela Companhia das Letras.
      Ao ler os escritores comentando sobre seus processos de criação literária, entendemos melhor suas essências e intencionalidades. É bem bacana, principalmente para quem também escreve e busca beber dessas fontes.
      Abraços!

      Excluir
  3. Gostei da dica de leitura, pois ultimamente venho buscando novos conhecimentos quanto ao processo de leitura. Sinceramente, não conheço o autor, mas pesquisarei a obra dele.

    Abraços.
    eaijl.blogspot.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Felipe! Procure, sim... tenho certeza de que vai gostar.
      Estou lendo A Insustentável Leveza do Ser e adorando!
      Abraços

      Excluir
  4. Também amei a dica.
    Obrigada Ben Oliveira.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Zenilda!
      Fico muito feliz que tenha gostado da indicação de leitura!
      Gratidão pela visita.
      Abraços

      Excluir
  5. Nossa eu preciso desse livro também, já li 4 romances dele e não me arrependo de nenhum! Concordo com você, as vezes precisamos de uma pausa na ficção, eu estava em busca de uma boa biografia mas esse livro parecer ser uma boa pegada também ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, Bibbi!
      Milan Kundera é um desses autores que não me decepcionou. Li alguns e fiquei com vontade de ler mais! Os livros dele me fazem refletir sobre a vida e a existência, principalmente, neste mundo fragmentado que vivemos.
      De biografia, eu recomendo Max Perkins: Um Editor de Gênios. Rolou resenha aqui no blog: http://www.benoliveira.com/2015/09/resenha-max-perkins-um-editor-de-genios.html Recentemente o livro foi adaptado para o cinema, mas não chegou por aqui. O jeito vai ser esperar sair pela Netflix algum dia.
      É fantástico ver como o editor mudou a vida de muitos escritores e sem a ajuda dele, muitos nem seriam publicados.
      Abraços e muito obrigado pela visita!

      Excluir
    2. Nossa adorei a dica, colocando na listinha de aniversário!!!

      Excluir
    3. Oi, Ananda!
      Fico feliz que tenha gostado da indicação de leitura ♥
      Abraços

      Excluir

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Volte sempre!

Mais lidas da semana