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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Resenha: As Rosas e a Revolução – Karina Dias

As Rosas e a Revolução é o segundo livro que li da escritora Karina Dias, publicado pela ENC Comunicação. O romance lésbico de 352 páginas tem uma história linda e envolvente, que se passa no período da ditadura militar no Brasil, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Se a época não era fácil para os jovens estudantes, artistas, jornalistas, imaginem só como foi para a protagonista do livro, Vilma Solano, uma adolescente filha de um coronel militar que contribuiu com a tortura.
Livro As Rosas e a Revolução, Karina Dias

O livro está dividido em três partes, nas quais a primeira e última poderiam muito bem serem chamadas de prólogo e epílogo, já que não são tão importantes quanto a segunda, onde estão concentradas todas as gamas de emoções, conflitos físicos e psicológicos, descobertas, amores proibidos, mortes e lutas. Antes de começar a primeira parte, o leitor já é surpreendido com uma linda dedicatória escrita pela Karina Dias:

 “Dedico este livro a todos que acreditam que o amor não é apenas uma palavra, mas o caminho que nos conduz ao respeito, à paz e ao verdadeiro sentido da vida”.

A história de Vilma começa a ser contada quando, em 2008, Miguel compra a casa em que a mulher morava. Alguns dias atrás, o rapaz descobre que o seu irmão Marcelo é gay e estava envolvido com um colega da faculdade. Religioso, Miguel se afasta do irmão com repulsa da atitude e passa a vê-lo como pecador. A história de fundo serve como reflexão ao leitor sobre como os homossexuais são vistos e tratados nos dias atuais pela própria família e pela sociedade e como apesar das condições dos anos em que vivemos não serem as ideais, existiram pessoas que lutaram e sofreram não só por causa da homofobia, mas por causa da repressão, censura e violência da época. Quando Miguel encontra um caderno de capa preta, escrito em tinta vermelha, movido pela curiosidade ele acaba conhecendo Vilma que o conta sua própria história de vida, provocando transformações nos pensamentos e atitudes do rapaz.

“Sou Vilma Solano, sobrevivente das trevas que tomaram conta deste país. O cerco está se fechando. Estamos mergulhados em anos de grande violência e dor. Querem calar a nossa voz, mas; enquanto me for dada a vida, serei militante do amor que nutro pela liberdade. Podem calar a minha voz, mas não podem calar o meu coração”.

Com este trecho, o leitor fica intrigado com a história de vida da personagem e é convidado para uma viagem em suas memórias, em março de 1968. Como seria bonito se pudéssemos filtrar só os acontecimentos bonitos de nossas vidas, certo? Vilma não esconde nada. Destemida e sensível, Vilma relembra os terrores iniciais em São Paulo, numa época em que ela não tinha noção do que estava acontecendo e os seus olhos se abriram. E uma vez que conseguimos enxergar algo que antes não víamos, não há como fechar os olhos e fingir que continua cego diante dos problemas. Naquele mesmo período, ela se liga a outras pessoas, vê seus novos colegas morrendo diante dos seus olhos e descobre que está dormindo na casa do inimigo.

Para não estragar a surpresa do leitor, pretendo não dar muitos detalhes sobre os acontecimentos. O que foi comentado até agora é possível conferir no primeiro capítulo de As Rosas e a Revolução disponibilizado pela escritora Karina Dias em seu site e na sinopse do livro. Sou muito ligado às palavras e se em alguns livros somos iludidos pela ideia de que vamos nos emocionar com a história, como aconteceu comigo quando lia A Culpa é das Estrelas, do John Green, com o qual não consegui me envolver com a história e muito menos me emocionar, Karina Dias acerta em cheio quando afirma: “Quando você abrir este livro, perceberá que as linhas tênues de um diário unirão para sempre a vida de Miguel, Vilma, Hanna, Anita e a sua”. As Rosas e a Revolução é o tipo de leitura que mesmo após conclui-la, você permanecerá pensando na história por alguns dias e levará as experiências, os conhecimentos adquiridos em sua bagagem cultural – à medida que os personagens vão se transformando, o leitor também se transforma e é tocado na alma, mente e coração por Vilma.

Duas coisas tornam a história mais verossímil e ajudam no processo de imersão no romance. A maneira que Karina Dias descreve os pensamentos e sentimentos de Vilma em primeira pessoa faz com que o leitor compartilhe as mesmas emoções e experiências. A riqueza em detalhes do que acontece não só à vida de Vilma, mas ao seu redor, o contexto histórico e as transformações da sociedade, dão um toque biográfico ao livro. As Rosas e a Revolução consegue ir além do entretenimento e de emocionar o leitor, acaba sendo uma aula de história sobre esse período turbulento do Brasil e consegue cumprir com o papel da boa literatura, o de transformar o leitor. Do momento em que o leitor abre o livro e termina de ler a última página, ele já não é mais o mesmo. Diferente de histórias que podem emocionar e arrancar risadas, mas não propõe reflexões e não trazem críticas sobre os problemas da sociedade. Há coisas que eu já sabia sobre o período da ditadura militar, porém que ao revivê-las no livro me fez perceber como a situação não foi tão distante dos anos em que vivemos e como muitas pessoas morreram, foram violentadas, ofendidas e silenciadas e ainda assim algumas pessoas continuam com seus pensamentos quadrados e não sabem valorizar a própria liberdade nem a do próximo.

Vilma conhece muitas pessoas ao longo do livro, mas  as que mais marcaram sua vida são Alda, uma militante por quem se apaixona e a ajuda a descobrir sua própria sexualidade. O período em que Vilma e Alda se envolvem são difíceis tornando impossível o relacionamento saudável entre as duas. Vilma também se envolve com Hanna, personagem que proporciona os momentos mais românticos e emocionantes do livro, além de refletir sobre como era difícil ser lésbica naqueles tempos devido a não aceitação de si mesma e a preocupação com a sociedade. Anita faz parte do pacote de alegria. Além de outros personagens que ajudam Vilma a se estabilizar após os conflitos em São Paulo, quando ela decide a se mudar ao Rio de Janeiro.

Nem preciso dizer que eu recomendo a leitura de As Rosas e a Revolução. Acredito que pela resenha deu para perceber como me envolvi com a história. A boa ficção aliada aos fatos históricos ocorridos no Brasil, misturados ao debate das ideias sobre o preconceito contra lésbicas e gays e amores clandestinos tornam a leitura mais prazerosa. Acredito que uma mensagem bonita transmitida no livro é a de que não podemos escolher nossas orientações sexuais, mas também temos direito de amar e lutar pelo que acreditamos. A história é inspiradora para heterossexuais, gays, lésbicas, travestis e transexuais do Brasil (público LGBT), visto que Karina Dias deixa sua contribuição na literatura como mais uma ferramenta para ajudar a combater a homofobia e propõe reflexões sobre como na hora de lutar pelos seus ideais e se proteger da ditadura todos lutavam lado a lado, independente do gênero e orientação sexual.

"Nosso amor era algo totalmente condenado. Casais do mesmo sexo não tinham respeito da sociedade, precisavam se esconder, viver em guetos. Éramos aberrações, pessoas impuras e sem Deus no coração. Tá certo que a coisa não evoluiu muito, mas, na década de 1970, era pior"

Sabendo que nem todos são aficionados pela leitura, principalmente dentro do universo gay, o que podemos mudar aos poucos, incentivando que mais livros coloridos ou não sejam lidos, seria lindo ver As Rosas e a Revolução sendo adaptado para o teatro e cinema. A história tem muito potencial e seria uma maneira de alcançar o público que não está acostumado a ler. Karina Dias mostra mais uma vez que consegue fazer boa leitura, independente do romance ser voltado para lésbicas – não significa que outras pessoas não possam se interessar, tanto para reviver o contexto histórico da ditadura militar quanto para abrir a mente–, e como o universo editorial precisa continuar valorizando os autores nacionais. Torço muito para o dia em que os livros para o público LGBT não sejam segmentados porque ainda há preconceito por grande parte dos leitores, autores e editores e sejam reconhecidos como boa literatura nacional, alcançando leitores independente de suas orientações sexuais e ajudando a diminuir com o preconceito. Como o personagem Miguel é livrado das sombras da ignorância e como Vilma persiste na luta pelo amor independente das dificuldades enfrentadas, espero que vocês, como eu, também sejam tocados por As Rosas e a Revolução.
Escritora Karina Dias, autora do livro As Rosas e a Revolução
Karina Dias no lançamento do livro As Rosas
e a Revolução. Foto: Divulgação.

Sobre a autora – Eliana Natividade escreve sob o pseudônimo Karina Dias. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1979, mas hoje reside em São Paulo, onde cursou Jornalismo na Universidade São Judas Tadeu. É autora do livro Aquele dia junto ao mar, publicado pela Editora Brejeira Malagueta em 2009, do romance As Rosas e a Revolução, lançado em 2014, do conto Al Encuentro del Amor, publicado em espanhol no livro Voces para Lilith, primeira antologia de literatura lésbica da América Latina, lançado em 2011. Karina também participa do livro Orgias Literárias da Tribo, organizada pelo escritor Fabrício Viana e publicada pela Editora Orgástica. Na internet publicou doze romances e um conto. Diário de uma Garota Atrevida é o seu segundo livro.

O livro As Rosas e a Revolução foi lançado em São Paulo e no Rio de Janeiro e está disponível para compra no site da escritora Karina Dias

Comentários

  1. Respostas
    1. Sérgio, muito obrigado pela visita e comentário!
      As Rosas e a Revolução foi um dos livros que mais gostei de ler neste ano.
      Abraços

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  2. Muito boa sua resenha, adorei.
    Esse livro é realmente maravilhoso!

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    Respostas
    1. Aira, fico feliz que tenha gostado do livro!
      Gostei muito do romance, principalmente por ter sido ambientado na época da ditadura.

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  3. Fiquei bem interessada!
    Parabéns pelo artigo.
    De salvapelolivro.blogspot.com

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    1. Oi, Carla!
      Obrigado pela sua visita. Fico feliz que tenha gostado.
      Beijos

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