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Destaques

Terminar de processar as emoções

Processar as emoções era muito mais importante do que fingir que algo não aconteceu. Era reconhecer os próprios erros e acertos e se permitir sentir as coisas boas e ruins. Era tentador fingir que nada aconteceu. Mas também era imaturo, também era um sinal de que havia se desconectado do real e emoções não processadas voltariam de um jeito mais cedo ou mais tarde. Foi reconhecendo os dias bons, mas acima de tudo, sentindo os ruins. Foi deixando tudo para trás, consciente de que não havia mais nada para revisitar, não havia pontas soltas. Então, de tanto sentir tristeza, dúvida e medo, havia sentido intensamente as emoções de forma que elas já não cabiam mais dentro de si. Ia se despedindo das emoções negativas, das emoções positivas, e abrindo as portas para novas emoções chegarem. Tudo o que sabia era que ficar em negação não era a resposta que buscava. Os dias pareciam que nunca iam chegar ao fim, mas finalmente se sentia livre do fantasma do outro.

Resenha: Errorragia – Roberto Muniz Dias

Depois de tomar um fôlego das resenhas para o blog, encerrei outubro com a leitura e resenha do livro Errorragia, do escritor Roberto Muniz Dias, de 170 páginas, publicado pela Editora Escândalo, em 2013. A coletânea de textos do autor é um complemento para quem já se deliciou com seus romances.

Capa do livro Errorragia, do escritor Roberto Muniz Dias
Em Errorragia, Roberto Muniz Dias convida o leitor para dar uma espiada em sua gaveta de papeis amarelos. Contos e crônicas estão misturados com naturalidade, de forma que não causam estranhamento ao leitor esta diversidade de gêneros textuais. Mais uma vez, vi-me mergulhado no universo das letras do escritor, rodopiando pelas suas páginas – mesmo tendo acesso aos seus textos, tive a sensação de espiá-lo pela fechadura e devorar mais um pedaço dele.

O efeito das narrativas do escritor, junto com o seu estilo, me faz conhecer sua essência, mesmo sem ter nenhum contato com o seu dia-a-dia. Nas entrelinhas dos fragmentos dos textos esconde-se Roberto, o narrador, o escritor e o personagem que gritam por um minuto de atenção, para falar sobre as coisas que estão atravessadas em sua alma. Se eu pudesse apontar um elemento que une todas as histórias, eu diria que é a solidão. Afinal, estar só é essencial para escrever, mas em excesso pode transformar toda substância criativa em destruição.

Nesta busca pelo equilíbrio entre os erros e acertos, as memórias e o presente, as expectativas e as desilusões, Errorragia não só proporciona momentos de prazer ao viajar pelas lembranças do autor, mas é um convite ao leitor a revisitar o seu próprio baú de memórias e escrever e reescrever suas próprias histórias mentalmente.

“– Nada é tão presente quanto a ausência – você repetia para que eu aprendesse com a dor” – trecho de Errorragia.

Outro ponto que me agrada muito nos textos do escritor é a questão da metalinguagem. Ler histórias sobre o processo de criação me inspira e, por vezes, me faz refletir sobre a minha própria escrita. Não é tão bom quando existe esta afinidade entre leitor e autor? Coloco-me no papel não só de quem está lendo o livro, mas de quem está interessado em desvendar os segredos, escutar os desabafos e aprender com alguém que tem mais experiência com livros do que eu, já que eu também me aventuro no mundo da escrita literária e temos estilos, bagagens literárias e conhecimentos diferentes, embora nossa intenção é bem parecida, a de fazer aquilo o que amamos e sabemos fazer para continuar existindo e dar sentido às nossas vidas: escrever.

Apesar de não ser um livro voltado exclusivamente para homossexuais, a obra também aborda algumas das inseguranças e visões do universo gay, como a questão dos prazeres proibidos, da culpa cristã, das idas e vindas dos relacionamentos, do medo de ficar sozinho, das descobertas e da monogamia.

A literatura não é a única arte explorada na coletânea. Em alguns textos, Roberto aborda a criação e os efeitos da pintura, da música e do teatro, além, é claro, da mais complexa e rica arte, a arte de viver. Como algumas das narrativas trazem a marca da autoficção, para quem também é escritor ou sonha em exercer o ofício, é interessante esta mistura de solidões, há uma comunhão, na qual ao ler as histórias aprendemos um pouco mais sobre nós mesmos e não nos sentimos tão solitários.

Para quem gosta de desfrutar não só parte textual, mas da parte gráfica dos livros – elemento que pouco faz diferença para alguns leitores, mas essencial na conquista de outros. A capa de Errorragia traz uma prévia do que vem no miolo da obra, uma mistura de fragmentos, traços e reconstrução da identidade, algo tão difícil de concretizar nesta era pós-moderna. Ainda no aspecto gráfico, no início e final de cada texto, há um líquido escorrendo, permitindo várias interpretações: o vinho do escritor, a arte de escrever com o sangue, a essência que escorre dos textos.

Ao final do livro vem aquela sensação gostosa de catarse, de reviver o passado e ao mesmo tempo entender que é preciso continuar seguindo em frente, sem deixar as memórias o destruírem. São nas sucessões de erros, não só nas de acertos, que construímos nossas próprias histórias e nos tornamos essas composições, essas telas formadas por pinceladas irregulares e cores diversas. Somos tomados por um suspiro de alívio: mesmo diante de nossos desequilíbrios, do caos, conseguimos sobreviver.

Escritor Roberto Muniz Dias, autor de Errorragia

Sobre o autor – Roberto Muniz Dias, romancista, contista, poeta e artista plástico. Formado em Letras e Direito. Esse escritor de Teresina, Piauí, começou nas artes ainda na adolescência, escrevendo diários e desenhando croquis. Autor dos livros: Adeus a Aleto, Um Buquê Improvisado, Urânios, A Teia de Germano, Errorragia, O Príncipe, o mocinho e o herói podem ser gays.

Leia: Entrevista com o escritor Roberto Muniz Dias

Errorragia pode ser encontrado no site da Editora Escândalo. O livro também está presente no Skoob.

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