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Destaques

Resenha: Tempo de Cura – Monja Coen

O livro Tempo de Cura , da autora Monja Coen , está repleto de reflexões e foi escrito no período da Pandemia de Covid-19, no período em que o Brasil e o resto do mundo estava lidando com questões como o isolamento social e o uso de máscaras respiratórias, bem como com pessoas que se negavam a seguir as orientações de saúde pública. O livro foi publicado pela editora Academia , em 2021. Compre o livro: https://amzn.to/3PiBtFO Em um período difícil, no qual as pessoas tiveram que lidar com a solidão, doenças e mortes, o livro escrito pela Monja Coen serviu como bálsamo para acalmar os corações e mentes – e pode ser lido até nos dias atuais, pois nunca estamos completamente imunes a passar por uma próxima pandemia e a doença permanece causando impactos para a saúde da população.  Compartilhando suas primeiras experiências com o zen e a meditação, Monja Coen é certeira em falar sobre a importância da paz e da cura e da preocupação com o bem-estar coletivo, dando como exemplo as orientaçõe

Asperger: Autismo, histórias que contamos e a importância cultural

Através da arte, dos livros, da escrita e dos elementos culturais, foi como se o tempo inteiro minha mente estivesse tentando me mostrar o caminho e eu não estivesse escutando. Cheguei a escrever um texto uma vez com a frase “O garoto estranho cresceu e se tornou escritor”. Algo que tenho observado é que sempre tive mais facilidade de me conectar com narrativas que trouxessem personagens com traços semelhantes aos autísticos (mesmo que não sejam necessariamente autistas, pelo menos, não formalmente).


Entre os mitos e preconceitos espalhados durante anos sobre autistas está o de que eles não têm empatia e não conseguem demonstrar emoções. Isso me faz pensar em histórias como a do livro/filme Não Me Abandone Jamais (Never Let Me Go), do escritor Kazuo Ishiguro e até mesmo em Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands), do diretor Tim Burton – sem mencionar os personagens que vieram de outros mundos, planetas ou mesmo os humanos que são deslocados socialmente por conta de seus comportamentos que provocam estranhamentos.



A importância da identidade do autista


Descobrir de forma tardia minha Síndrome de Asperger foi um alívio. Há quem tivesse expectativa que eu devesse me sentir intimidado, mas a verdade é que quando você é diferente, independente de você querer ou não, as pessoas sempre te tratam de forma diferente. A vida inteira foi assim e continua sendo; mesmo sutilmente, as pessoas percebem que somos diferentes. Então, assim como milhares de outros aspies sem diagnósticos pelo mundo, percebo o quanto ser camaleão pode ter suas vantagens adaptativas, mas também pode se tornar um fardo. Autistas não-diagnosticados e até diagnosticados podem estar suscetíveis ao suicídio por causa do estresse, da ansiedade e da depressão, bem como podem ter uma expectativa de vida mais curta por causa de afogamentos e acidentes, entre outros problemas e comorbidades (doenças) que podem nos deixar mais vulneráveis. Acredito que, muitas vezes, a relação com o suicídio vem da sensação do desencaixe na sociedade: o diagnóstico pode ajudar na parte do autoconhecimento, a entender porque o autista se comporta de forma diferente e que, por mais estranho que possa parecer para um não-autista, muitos desses comportamentos são normais para nós, neurodiversos. Por isso é tão importante que autistas se conectem com outros autistas e/ou consumam conteúdos produzidos pela ótica deles, não somente pela visão de quem nos vê como pessoas quebradas/doentes que deveriam ser consertadas, curadas e/ou isoladas.

O autismo em si não é uma doença, como muitas pessoas acreditam erroneamente; é uma condição neurológica diversa, porém alguns cuidados e atitudes podem ajudar a reduzir as crises e outras situações que podem causar mal-estar. Os preconceitos e mitos espalhados dificultaram e muito a vida de autistas diagnosticados e não-diagnosticados. Há quem acredite, por exemplo, que um autista pode deixar de ser autista: mito. Autistas também envelhecem e dependendo do grau e das comorbidades, eles podem precisar de mais apoio. O silenciamento do autismo em adultos, especialmente camaleões, é algo preocupante que tem acontecido pelo mundo todo. Pesquisas também mostram que mesmo quando o autista consegue disfarçar o seu autismo e transitar entre neurotípicos (não-autistas), sem as formas de reduzir os impactos, ele pode se sobrecarregar e estar mais suscetíveis a crises e esgotamentos. O autocuidado é tão importante quanto remédios – e acredito que as medicações devem ser usadas somente em casos necessários.

Autistas também têm emoções e empatia


Quando penso na história de Não Me Abandone Jamais, não consigo deixar de pensar em como não é tão distante da realidade de um autista. A premissa do livro/filme é mostrar como seria a vida de clones humanos que foram criados somente com o propósito de se tornarem doadores de órgãos. As crianças crescem achando que são especiais, mesmo sabendo que não há para onde correr. Porém, a esperança é traiçoeira. Assim como aconteceu com os clones do Kazuo Ishiguro, muitas pessoas também continuam acreditando que autistas não têm emoções (um pensamento bem perigoso que leva algumas pessoas a punirem e à violência física, psicológica e sexual) e os personagens do livro/filme estavam dispostos a tentar mostrar que eles têm uma alma e são capazes de sentir as coisas através da arte, em uma tentativa de mostrar para a sociedade que eles podem ser mais do que doadores de órgãos.



A narrativa de Kazuo Ishiguro é envolvente e nos dá esperança de que, de alguma forma, a sociedade vai ter pena dos clones e deixá-los ter uma vida normal se conseguirem sobreviver à doação de órgãos. Acontece que a cada doação de órgão, a expectativa de vida deles é reduzida. Além da arte, outra forma que eles encontraram para mostrar para a sociedade que são normais era através do amor e da amizade. Sempre que vejo informações preconceituosas sobre autismo sendo divulgadas na internet, fico pensando em como as pessoas nos interpretam de forma tão errada e como para muitos deles, a menos que autistas tenham habilidades excepcionais (sejam gênios), somos vistos como criaturas que deveriam ser invisíveis. O autista só quer ser respeitado, poder ser ele mesmo e ter dignidade e apoio quando necessário.

Edward Mãos de Tesoura é outro personagem que por meio das representações metafóricas e visuais nos faz pensar no autismo. O personagem tem vários comportamentos e características que o tornam um alvo fácil para bullying e que mostram um pouco das dificuldades que autistas enfrentam em algumas fases da vida: Edward não fala muito (alguns autistas podem se isolar); Ingênuo e sincero demais; Muito criativo; Habilidades desajeitadas; Movimentos repetitivos (estereotipia/stimming) – geralmente, utilizados pelo autista em situações de sobrecarga sensorial e emocional; Dificuldade de se ajustar a diferentes rotinas e gostar de padrões; Mesmo com as dificuldades de expressar emoções, ele também é capaz de amar.

Há um artigo que questiona se a facilidade da criação do personagem teria relação com a vida do Tim Burton [O artigo em inglês para quem quiser ler: https://www.peoplefirsteducation.co.uk/tim-burtons-edward-scissorhands-as-a-psychological-allegory-by-cory-sampsonhttp-www-timburtoncollective-comedwardpsycho-html/]. Para quem não sabe, a ex-esposa do Tim Burton o diagnosticou informalmente (infelizmente, essa é a realidade de centenas de pessoas pelo mundo todo que não conseguem encontrar médicos que entendam de autismo e que saibam interpretar seus comportamentos e/ou escutá-los). No livro O Estranho Mundo de Tim Burton dá para conhecer um pouco de sua infância e alguns dos seus comportamentos, como gostar de assistir aos mesmos filmes, o isolamento e enxergar o mundo de forma diferente. Apesar de não se aprofundar na parte biográfica e se focar mais na cinegrafia do Tim Burton, recomendo a leitura da obra.



A realidade entre autistas pode ser completamente diferente (mesmo entre Aspergers), mas algumas características são comuns. Quem melhor do que um autista para falar sobre sua realidade, seu mundo interno que nem sempre os outros conseguem enxergar ou entender? Quando há a possibilidade, deixe autistas falarem por eles mesmos. É importante que familiares e profissionais levem conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista, mas também vale a pena lembrar que existem muitas pessoas compartilhando informações erradas e perigosas, como a de que o autismo é causado por vacinação e/ou de que o autista pode ser curado.


Entre os preconceitos e mitos sobre autismo espalhados pela internet e até mesmo ao vivo por profissionais desatualizados e pessoas ignorantes estão (em parênteses estão as informações adequadas): 


  • Autistas não têm sentimentos e não conseguem demonstrar afeto (pesquisas mostram que alguns autistas podem ser muito empáticos);
  • Não conseguem olhar nos olhos (alguns conseguem, mesmo que por um curto período e outros são camaleões);
  • Todo autista é um gênio (embora alguns autistas possam ter algumas habilidades acima de média, geralmente, outras áreas são descompensadas e essa visão pode ser bem capacitista e dar valor somente ao autista genial, invisibilizando os outros autistas de diferentes graus com suas limitações);
  • Autistas não conversam (existem autistas extrovertidos e mesmo os introvertidos também podem ter amigos);
  • Autismo pode ser curado (NÃO É DOENÇA – essa narrativa faz parecer que autistas não procuram ajuda porque não querem ou que são preguiçosos, além de aumentar o preconceito e as dificuldades de autoaceitação);
  • Autismo é raro (não é tão raro quanto parece e a sociedade que nos invisibiliza e vê o autismo como doença insiste em espalhar que está acontecendo uma epidemia, quando o autismo é mais antigo do que muitos médicos e psicólogos imaginam);
  • Síndrome de Asperger é causada por falta de cuidados dos pais (um dos mitos que culpabiliza a mãe e o pai pelos comportamentos do autista; essa teoria já foi derrubada há anos);
  • Pessoas com Asperger não têm imaginação (existem autistas na área artística e outros que são sinestésicos, nossas imaginações podem ser mais intensas do que a de qualquer outra pessoa);
  • Autistas são iguais (cada autista é único, por isso o espectro do transtorno autista é amplo);
  • Autistas não têm relacionamentos (autistas podem namorar, casar, ter filhos, ter amigos);
  • Autistas são perigosos para a sociedade;
  • Autistas são mais violentos do que não-autistas.

“Precisamos que nossas vozes sejam ouvidas e honradas. Precisamos de acesso à educação e ao emprego, precisamos de acesso às ferramentas que capacitam todos a fazerem parte do mundo e serem responsáveis pelos nossos próprios destinos”Julia Bascom, Evento das Nações Unidas sobre Autismo

Confira a reportagem da BBC Brasil: 'Só descobri que tinha autismo depois de adulta'

Por isso é muito importante que autistas e familiares encontrem profissionais adequados. Profissionais da saúde que não estão capacitados para identificar autistas leves, de alta-funcionalidade e Aspergers podem dar diagnósticos errados e/ou não perceberem que os sintomas são comorbidades que estão mascarando o autismo, sem mencionar os comportamentos comuns aos autistas que são confundidos com traumas. Algumas mulheres descobrem o próprio autismo quando o filho é diagnosticado, o que também pode ser libertador – embora não seja uma regra. Entre os transtornos mais comuns que autistas são diagnosticados antes de conseguirem o diagnóstico certo e/ou que são diagnósticos complementares (não excludentes) estão: Transtorno alimentar; Síndrome do Pânico; Depressão; Bipolaridade; Borderline; TDAH; Ansiedade Social; Esquizofrenia; TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo); TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada). 

Confira o programa do Pedro Bial sobre autismo: Psiquiatra desmente mitos sobre autismo e afirma: 'Atrasa o diagnóstico'

É interessante que existam narrativas com personagens autistas para que eles possam se colocar na pele de personagens que tenham as mesmas facilidades e dificuldades: a arte sempre foi uma forma do ser humano buscar a catarse. Muitos autistas percebem que não estão sendo ouvidos e suas considerações não são levadas a sério, seja por profissionais da área da saúde, familiares ou até mesmo pessoas próximas. Pela falta de amparo da área da saúde, muitos autistas têm estudado e pesquisado por conta própria para se entenderem mais e acabam sabendo mais sobre o assunto do que os profissionais que deveriam nos acolher e não estão fazendo sua lição de casa. 


Assista Pablo: Um desenho sobre autismo com dubladores autistas brasileiros:


Outro ponto que nos incomoda é como neurotípicos (não-autistas) têm mais facilidade de simpatizarem com personagens com traços autísticos (como o Sheldon, The Big Bang Theory) e têm dificuldade de aceitar nossas limitações no mundo real e/ou achar que algumas situações são frescuras, que estamos mentindo e somos manipuladores, mesmo quando podem provocar desconforto e crises (meltdown, shutdown e burnout). Séries como Atypical e The Good Doctor têm mostrado um pouco do universo do autista/Aspergers, mas em termos de representatividade, mesmo em produções culturais, ainda há dificuldade de vermos personagens mulheres (vale a pena assistir ao filme Tudo Que Quero), de outras cores e de outras identidades e orientações sexuais. Essa mesma falha de diagnósticos de pessoas diversas ainda é presente no mundo real, então, não é tão difícil entender como em termos culturais ainda estamos tão atrasados na representatividade de personagens neurodiversos.

*Ben Oliveira é escritor, blogueiro e jornalista por formação. É autor do livro de terror Escrita Maldita, publicado na Amazon e dos livros de fantasia jovem Os Bruxos de São Cipriano: O Círculo (Vol.1) e O Livro (Vol. 2), disponíveis no Wattpad e na loja Kindle

Veja também três vídeos relacionados ao universo do autismo no meu canal do YouTube:






Comentários

  1. Excelente texto. Realmente as partes combinantes entre livros, filmes e séries e a vida real de muitos autistas são assustadoramente imensas.

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    1. Olá, Glauber. Obrigado pela leitura. Acredito que essa identificação é natural para todos que encontrem personagens com personalidades similares e é importante se ver na ficção, saber que existem outras pessoas parecidas.
      Abraço

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  2. Respostas
    1. Olá, Ada!
      Gratidão pela leitura. Fico feliz que tenha gostado.

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