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Destaques

Sobre Reler Livros

Reler um livro era como tocar um tecido que você já usou várias vezes, como se fosse pela primeira vez. A textura parecia diferente; o cheiro não era o mesmo; Era impossível não imaginar na palavra que circulava pela mente: diferente.  E por que esperar pelo impossível igual? O leitor não era o mesmo. Um intervalo de tempo considerável havia se passado. O personagem que costumava ser o favorito talvez agora seja outro. O texto que escreveria a respeito do livro talvez jamais fosse igual. Era um diferente leitor, um diferente livro, uma diferente interpretação. Ler pelo mero prazer era diferente de ler pensando na resenha que escreveria em seguida. Escolher o livro de forma aleatória era diferente de já tê-lo em mente. Reler era diferente de ler, mas sobretudo, era uma nova forma de leitura: os detalhes que antes não chamavam a atenção, agora pareciam brilhar nas páginas. Não estava no mesmo lugar em que estava quando o leu pela primeira vez. Sua pele não era a mesma, tampouco seu céreb

Asperger: Mundo invertido e a normalidade tóxica

A normalidade é um peso tóxico que ninguém quer carregar, mas quer empurrar para o outro. O que é ser normal? Quem é que decide o que é aceitável ou não? Um exercício gostoso de se fazer é o da inversão. Vivemos em um mundo no qual pessoas diferentes lutam contra o preconceito diariamente. Se pudéssemos inverter o jogo: será que você buscaria se adequar ao nosso normal?


Como alguém que passou a vida inteira se sentindo diferente e tentando se encaixar, consciente ou inconscientemente, posso garantir que se sentir um peixe fora d’água não é nada legal. Julgar quem é diferente é algo muito fácil. Mas se você não pode se colocar no meu lugar, por que eu deveria me colocar no seu? Há uma série de questões que podem ser elaboradas sobre os grupos dominantes e os minoritários.

Palavras têm o poder de machucar ou confortar, envenenar ou curar. Ironicamente, durante anos, mentiras e mitos foram espalhados sobre autistas não sentirem empatia (entre tantas outras que mesmo sendo desmentidas, continuam ecoando até os dias atuais). Tudo aquilo que as pessoas não entendem, elas são rápidas em julgar. Então, se a pessoa tem dificuldade de se comunicar com a outra, logo se presume que suas opiniões estão certas e que sabem tudo, mesmo sem questionar o seu próprio ‘objeto de estudo’ – ou pior ainda, de que entendem melhor do que quem se sentiu diferente a vida inteira.

“A normalidade é uma estrada pavimentada. É confortável para andar, mas não crescem flores nela” – Vincent van Gogh

Vale lembrar que alguns estudos e artigos escritos por autistas já alertaram que muitas vezes, alguns autistas sentem muita empatia e não conseguem demonstrar ou podem ficar sobrecarregados. Eu diria que, hipoteticamente, pela necessidade de se encaixar e ser aceito pelos outros, é mais fácil o autista ter empatia com o não-autista do que o não-autista ter com o autista, especialmente porque grande parte das dificuldades vêm da incapacidade de entender o mundo do autista, da falta de inclusão (educação e mercado de trabalho) e do preconceito. Deixo até a recomendação de que as pessoas passem a ler o autismo não somente pela ótica de quem estuda e pesquisa o assunto, mas também pela visão da própria comunidade de autistas para perceber que somos todos humanos.

E se no lugar de dizer que eu tenho o Transtorno do Espectro Autista, tenho Síndrome de Asperger e/ou dizer que sou neurodiverso, atípico, autista – seja lá qual termo você prefira adotar –, eu dissesse que tenho o Transtorno do Comportamento Neurotípico ou Normose Típica... Como você se sentiria? Para quem não sabe, para nós autistas, neurotípico é quem não tem autismo. Durante anos, fomos, ainda somos e provavelmente seremos julgados por nossas condições neurológicas diversas: nossos cérebros funcionam de forma diferente daquela esperada pelos critérios de ‘normalidade’ e isso leva a diferentes reações, levando em conta o ‘grau do autismo’ (não gosto muito do termo).

Alguns autistas são identificados com mais facilidade do que outros. Uma das estratégias de identificação de pessoas com Síndrome de Asperger, por exemplo, é por meio dos comportamentos neurodiversos/autísticos. O espectro não é linear, logo não existe um Asperger que é mais autista do que outro; assim como não existe uma competição de quem é mais autista no espectro inteiro – somos diferentes, mas temos alguns traços em comuns, mesmo com habilidades e deficiências diversas.

Muitas vezes, a sociedade espera que o autista se comporte como um não-autista. Alguns autistas conseguem se camuflar bem, especialmente aqueles cujas deficiências são invisíveis (para quem não conhece suas realidades e desafios diários), mas sempre ficam com aquela sensação de inadequação. Nós não precisamos pedir desculpas por existir. Como seria se as pessoas neurotípicas tivessem que agir como autistas? Talvez com esse simples exercício as pessoas entenderiam que muitas vezes não é só uma questão de querer, de falta de vontade, mas de diferença de percepção e funcionamento.

Ainda sobre a normalidade, existem muitos pontos para refletir. Quantas das pessoas que não se encaixam tem algum transtorno e nunca foram diagnosticadas? Não estou falando exclusivamente do autismo, embora muitos aspies só descubram o autismo na fase adulta (diferente do que se acredita ou do que é idealizado); tampouco estou dizendo que toda pessoa que não se encaixa necessariamente tem algum transtorno.

Quando pensamos em grupos minoritários e autismo, especialmente no cenário brasileiro, no qual as dificuldades de profissionais para diagnóstico, tratamento e inclusão são problemas reais, muitas vezes, alguns grupos são deixados de lado. Se em alguns grupos os dilemas ainda são a superproteção ou a indiferença (mais real do que se imagina, pois muitas pessoas se recusam a entender os comportamentos autísticos), em outros, não compreender a própria diferença de funcionamento cerebral pode ser algo danoso à saúde mental.

Ainda sobre exclusão, enquanto o Brasil ainda se encaminha para o diagnóstico de meninas, mulheres e homens que passaram anos sem saber sobre suas condições, muitos grupos minoritários podem ter dificuldade de reconhecer o próprio autismo, como LGBTQs e as classes sociais menos favorecidas. Também precisamos lembrar que não são todas as cidades do país que têm profissionais que entendem de autistas e que mesmo quando há, muitas vezes, pela falta de recursos, essas pessoas não têm o apoio adequado – os custos são elevados demais levando em conta a realidade social brasileira.

A depressão e a ansiedade entre autistas, por exemplo, são bem comuns, especialmente por causa da sensação de desconexão com o mundo e da necessidade de readequação constante. Coisas que podem ser comuns para não-autistas podem se transformar em um pesadelo para outros, independente do ‘nível de funcionamento’.

“Se você julgar um peixe pela sua capacidade de escalar árvores, ele passará a vida inteira acreditando que é estúpido” – Albert Einstein

Nesta tentativa de definir o que é normal e de patologizar o diferente, penso que ainda há muito a ser estudado e discutido. A palavra inclusão vez ou outra é usada na teoria, mas na prática, quem sabe como é a realidade logo percebe que estamos completamente distantes do aceitável. Como alguém que acompanha outro tipo de preconceito durante anos (homofobia) e que mesmo nascendo assim, as pessoas lidam diariamente com o ódio e profissionais antiéticos que tentam nos curar, torço para que chegue o dia em que autistas não sejam vistos como estranhos e/ou que muitos adquiram a consciência de que ser diferente não é algo tão ruim assim em um mundo em que os valores parecem invertidos.



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*Ben Oliveira é escritor, blogueiro e jornalista por formação. É autor do livro de terror Escrita Maldita, publicado na Amazon e dos livros de fantasia jovem Os Bruxos de São Cipriano: O Círculo (Vol.1) e O Livro (Vol. 2), disponíveis no Wattpad e na loja Kindle.

Comentários

  1. Perfeito, Ben!!! Realmente "inclusão" existe muito mais na teoria e em discursos do que na realidade. As pessoas precisam ser mais educadas sobre todas essas diferenças entre as pessoas, mas também necessitam desenvolver empatia de verdade e não essa "empatia de redes sociais". Abraço.

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    1. Oi, Michele! Muito obrigado. Eu imagino que o problema de empatia começa nos consultórios e dentro de casa. A partir do momento que não somos respeitados por quem deveria respeitar, o que esperar de quem não entende do assunto?
      Muito obrigado pela leitura!
      Abraço

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